Antonio Tabucchi

O encontro com o escritor que defende a liberdade do homem acima de qualquer coisa
Tabucchi: “O mais admirável é o homem que, sozinho, busca a si mesmo no seu labirinto”
01/03/2004

Su figura, divulgada con ese nombre, habría sido solo el invento de un grupito de intelectuales argentinos (entre ellos, naturalmente Bioy Casares) que simplemente habían publicado una obra colectiva detrás de la creación de un personaje ficticio. Y que la persona conocida como Borges, aquel viejo ciego con bastón y sonrisa árida, era un actor italiano de tercer orden (la revista mencionaba incluso el nombre, pero no lo recuerdo) contratado años antes para hacer una broma, y que había quedado cautivo dentro del personaje resignándose finalmente a ser Borges “de verdad”.

Duas luas tomam conta do céu de Roma. A menor está pousada sobre o Vaticano, a maior segue cumprindo sua rota celeste.

— Nada estranho, diz o macaco

sendo dia e dia santo.

— Todo dia é santo na Itália, responde o gaiteiro.

E mesmo assim o sol segue imperador de si mesmo, a ofuscar os olhos de quem tenta encontrar no grande satélite prateado significados ocultos. E isso o fazem, às centenas de milhares, pesados caminhantes adentrando a praça de São Pedro, assim como outros, sonambúlicos hereges ocultos nas catacumbas.

daqueles que buscam a si mesmos por meio dos outros. Porque como pode o homem ser otimista nestes tempos, século absurdo em que vivemos, sem dúvida? Não, eu não. Prefiro o ceticismo a fazer meus personagens sobre a imagem daqueles que sempre terminam dando falsas conclusões, renunciando aos grandes ideais

Jogo uma moeda para o alto e a apanho no momento que desce. Compro uma lata de Coca-Cola e dobro as folhas de papel impressas e

se literatura e cidade são importantes, as pessoas vivas são mais. Um livro ou um poema pode elevar ou contribuir para elevar um país (podemos o quanto antes reivindicar o direito de sonhar, por que não?), mas as pessoas são o primordial. Um poema pode sugerir a visita a um país, uma ilusão também o pode sugerir, mas o importante é que o homem que nutre estas alturas dos tempos suas ilusões, esse homem que caminha pelas ruas, seja em Lisboa, Florença, que seja eu, esse homem segue sendo um homem livre

sigo meu caminho,

porque ninguém é tão bela ou metafísica para convencer totalmente uma pessoa a enamorar-se de todo um país (digo todo, porque me refiro estritamente a todos os seus habitantes). O melhor é a amizade que se dá entre homens, e o mais admirável é o homem que, sozinho, busca a si mesmo no seu labirinto, e que apesar do azar, decide mudar sua vida, sem ajuda de nada, seja literatura ou nação

desviando das ciganas e procurando entre elas alguma que seja especial. Um sonho perdido na literatura e outro construído em tardes dominicais, no cinema de uma pequena cidade.

A mais velha, a que lidera o grupo, aponta para o homem de calças largas e barriga protuberante. Feito nuvem de gafanhotos, avançam sobre o coitado até que o sufocam e levam a carteira. Ele percebe e começa a gritar.

a literatura não basta, devo ser sincero, inclusive perante o amor e a simpatia que tenho pela literatura portuguesa

Ele me encara. Ela me encara. Eu me afasto.

não sei se esses personagens chegam a encontrar-se a si mesmos, mas sem dúvida em suas buscas existenciais não têm outro remédio que não se enfrentar com a imagem que os outros têm deles. Estão forçados a encarar-se como em um espelho, e talvez consigam enxergar algo de si mesmos

De um telefone público pergunto se o senhor Antonio Tabucchi voltou. O atendente me diz que não o viu, ainda.

— Caso queira esperar, o bar está aberto.

Pego a condução e durante a viagem aproveito para ler uma pequena biografia

(Antonio Tabucchi nasceu em Pisa, em 1943, e passou sua infância e juventude na cidade vizinha de Vecchiano. Ali cursou a escola elementar e média, graduando-se a seguir no Liceu de Pisa)

que encontrei na Internet. Desço no ponto correto e paro para comer um pedaço de melancia.

— Uma corda me levaria facilmente até ela, minha amada prisioneira na lua cristã, diz o macaco.

— Primeiro você teria que ser livre de mim, responde o gaiteiro.

Ilustração: Vasco

Gosto do nome do hotel

sempre gostei dos personagens atormentados e contraditórios. Quanto mais dúvidas, melhor. As pessoas que duvidam muito às vezes levam uma vida mais pesada e esgotadora, porém são mais vitais, não são máquinas. Prefiro a insônia à anestesia. Não me agradam os personagens cujas vidas são plenas, satisfatórias. Meus livros são sobre os perdedores, extraviados, aqueles que estão buscando

— Imperator.

Confiro se tenho em minha bolsa material para anotações e atravesso a rua. Um carro passa apressado e o vento me causa tontura. Ou talvez não tenha sido o vento, mas a impressão que tive. No momento que o automóvel cruzou meu caminho, enquanto respirava fundo e não tirava os olhos da portaria do hotel, senti um estranho frio na barriga,

sou professor universitário e gosto de sê-lo. A literatura é minha vida, claro, mas desde um ponto de vista ontológico, desde o ponto de vista existencial gosto de ser professor

uma sensação incômoda, como as que sinto quando vou a velório de pessoas desconhecidas.

a literatura para mim não é uma profissão cotidiana, mas algo que pertence ao desejo, aos sonhos, à fantasia

Minhas pernas bambeiam e dou um passo atrás. Por sorte, um homem de cabelos grisalhos e bigode démodé impede minha queda.

não quero me converter no promotor de minha própria imagem. Não gosto de aparecer na televisão, nem freqüentar círculos literários. Vivo retirado em minha casa, com minha família e meus amigos

Ele corrige minha postura e

— não existe

antes que eu possa agradecer-lhe, segue seu caminho até entrar no hotel a que me dirijo.

— O senhor está bem?

para Eco o intelectual é um organizador da cultura, aquele que pode dirigir uma revista. Um administrador, melhor dizendo

Um senhor calvo,

me parece uma posição melancólica para um intelectual

beirando os sessenta anos pergunta me percebendo parado no meio da rua.

— Se aquele senhor não me ajudasse eu teria caído. Agora estou bem, obrigado.

O homem careca procura quem afirmo existir, sem achar, e assim parece não entender o que digo e, com um sorriso lacônico afasta-se rapidamente.

eu reivindico o direito da tomada de partidos ocasionais. Quando uma coisa obscura está acontecendo no mundo ou em tua casa, tens o dever de sair e explorar esse problema para ver se o localiza, o particulariza, o transmite e dá o alarme: “cuidado, está acontecendo algo em minha casa, em minha cidade, no mundo, que também é minha casa”. Do contrário o intelectual seria um personagem completamente insensível que diz: “algo sujo está acontecendo em minha casa, mas não posso me interessar porque estou organizando um catálogo para a próxima exposição de pintura do museu de minha cidade”

— Como não está? Eu acabei de ligar e o senhor me disse que eu poderia esperar no bar até o senhor Antonio Tabucchi voltar.

O atendente enrubesce ao pedir desculpas pela sua falha, e insiste que não há hóspede algum com esse nome.

— Estou dizendo que o escritor Antonio Tabucchi está hospedado neste hotel.

Percebendo que começo a me exaltar, o gerente sai da chapelaria e aproxima-se. Vestindo um terno de linho, próprio para o verão, informa-se da situação e reitera as desculpa e diz que não há ninguém com tal nome registrado no hotel, muito menos escritor.

— De qualquer modo, caso queira, pode ficar no bar que iremos verificar com mais atenção a lista de pessoas que deixaram ou reservaram quartos nos últimos dias.

Agradeço a atenção e vou para o bar. Sento junto à janela que dá para o jardim interno e, mais tranqüilo, certo de que perceberão o mal-entendido, aguardo o momento de ter minha conversa com Tabucchi.

— Às vezes duvido ser eu o prisioneiro e acho que a ponta da corda que amarra meu pescoço é que domina a ponta que se prende à sua mão, diz o macaco.

— É é isso mesmo. Eu sou o escravo e vou continuar assim até que a morte nos alcance. Para que fugir de posição tão confortável?, responde o gaiteiro.

Gosto dos odores que exala o ambiente antigo, ainda mais este que parece saído de um filme de Fellini. Teto de gesso amarelecido pelo tempo, lustres de cristal, luminárias espalhadas pelas paredes, ladeadas por cabideiros de chifre de carneiro e fixadas com pregos prateados de cabeça chata. Apoiando uma das pilastras, uma mulher de cabelos loiros e seios fartos, que eu tento não ver, mas continua ali, com seu vestido preto, muito justo, a conversar com o homem muito parecido com Mastroianni.

— Uma Coca-Cola, por favor.

No momento em que o garçom traz a bebida, pergunto se tem suco de melancia. Sem a opção, agradeço e volto a ler as anotações que trouxe,

Pessoa é o poeta que conheci quando li Bureau de Tabac. É nele, além de seus heterônimos (Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Coelho Pacheco), que se encontra o homem de grandeza e excelência poética que lutou contra sua solidão quase metafísica e no extremo da perda da identidade que era sempre substituída por outra

mas cheio de inteligência, fecho o livro e procuro a loira e seu acompanhante e percebo que desapareceram. Próximo à pilastra, em vez de qualquer beldade, está o homem de bigode que me ajudou faz poucos momentos, junto com um outro, bem mais velho, que apesar de sentado apóia as mãos em uma bengala. Visto com mais atenção, descubro que é cego e se parece espantosamente com Jorge Luis Borges. E prestando atenção ainda maior, vejo que o homem de bigode pode perfeitamente ser Tabucchi. E tomando mais um gole do refrigerante, pisco e os observo novamente e acabo me convencendo de que aquele homem junto à pilastra é Antônio Tabucchi. Tanto que levanto e vou cumprimenta-lo.

— Desculpe, meu jovem, você se enganou. Meu nome é Adamastor Coimbra, e sou um ator português. Mas não fique chateado com seu engano. Muitas pessoas me confundem com o senhor Tabucchi. O mesmo acontece com meu amigo aqui, Giovanni Argento. Se você é realmente um amante da literatura deve ter percebido sua semelhança com um gigante austral das letras.

Confirmo que a semelhança não me passou desapercebida e peço desculpas e volto a meu lugar. (o macaco tanto ri que cai de seu poleiro). Pena que sentar não afasta de mim a sensação de algo estar errado. Principalmente por ter lido o texto no qual Tabucchi conta a matéria publicada em certo periódico, que acusava Borges de ser um autor inexistente. Na verdade uma broma inventada por diversos autores argentinos, inclusive Bioy Casares. E que o Borges de carne e osso, em realidade, era um ator italiano que, com o passar dos anos, acabou conformado-se ao papel e deixando de querer ser outro senão o verdadeiro Borges. (o gaiteiro perde o ritmo tanto que ri).

Volto a levantar-me e cruzando a extensão do salão peço licença para fazer algumas perguntas.

— Se não se incomodam, é claro.

Para minha surpresa, os dois senhores tanto aceitam como me convidam a sentar e partilhar da garrafa de vinho tinto que tomam. E durante duas horas, mais duas garrafas de vinho e algumas fatias de queijo, falamos de assuntos variados

a fantasia e a literatura também são formas de conhecimento intuitivo, que têm pouco a ver com a lógica de Wittgenstein, mas que também é uma forma de conhecimento, a da suspeita e da dúvida

que vão dos animais extraordinários encontrados por Darwin nas ilhas Galápagos

— O que poucos sabem é que lá havia tartarugas maiores que automóveis e que foram dizimadas por doenças do homem europeu. Um dos únicos cascos restantes está guardado na casa que pertenceu a Pablo Neruda, confundida com a banheira de tantos amores.

— O desespero maior é o que virá. E quando chega a velhice, todas as palavras são desesperadas. Seja verdade, seja mentira, acreditar é menos que compaixão do que prova de respeito pela morte próxima.

Argento fala com tanta convicção que tendo a acreditar. Se bem que Adamastor afirma que dos mistérios deste mundo, a existência do outro é a grande questão.

— Tudo covardia dos sentidos. E se formos aceitar a covardia como sendo uma reação vergonhosa, poucos podem vangloriar-se no além de terem tido uma existência honrosa. Mesmo Aquiles, preso no Hades reclama que é melhor ser um pobre pastor a rei dos infernos.

— Se bem que Hefestus, senhor dos infernos, casou-se com Afrodite, a deusa da beleza.

— Uma metáfora reafirmando que a beleza não conduz ao paraíso.

— Eu me casaria com Afrodite, diz o macaco.

— Eu prefiro Hefestus, sorri o enrubescido gaiteiro.

Enquanto ouço a conversa, tenho poucas oportunidades de fazer perguntas, e menos ainda de duvidar de que não estão dissimulando e que tenho à minha frente os verdadeiros Borges e Tabucchi. E nessa levada de fantasia, não me importo que todos saibam que o contista argentino tenha morrido, ou mesmo que o gerente do hotel tenha confirmado que o autor italiano não está no hotel. Bebo e brindo.

— Não está cansado, pergunta o preocupado macaco.

— Minha munheca dói, mas se você consegue, eu consigo, responde o resignado gaiteiro.

Pouco após anoitecer, Argento pede licença, pois precisa voltar a seu quarto para descansar. Adamastor diz que irá levar o velho companheiro para ajudá-lo com a escada. No momento que levanto para as despedidas, vejo que o bar está cheio e vários dos presentes me parecem conhecidos. Principalmente o homem de rosto afilado e circunspecto que, servindo-se de um cálice de licor, faz rápidas anotações no guardanapo de papel.

— Cortázar, cumprimenta o esfuziado macaco.

— Não, Frederico. Pasolini, corrige o gaiteiro.

apreciei traduzir Pessoa, lê-lo, como li Stendhal, Pirandelo, Joyce, Sciascia, Machado, Borges. É a família de escritores que me sinto mais próximo, a de que mais gosto

Antes que se afastem, pergunto a Adamastor porque, quando me ajudou na rua, falou algo como não existe. Mas não tenho resposta.

— Vamos embora, meu amor, diz o macaco.

— Já é hora de dormirmos, sorri o gaiteiro.

minha vida compõe-se principalmente das pessoas que encontrei, das opções que escolhi e dos filhos que fiz. Os livros são parte importante de minha vida, mas lembre-se, não são a vida. A vida é ilusão. Ilusão que, quem as perde, homem incerto será. Como os de hoje, como os ontem. Cuidado com isso. Deves evitar sempre perder as ilusões.

Está ficando tarde demais
Antonio Tabucchi
Rocco
194 págs.
Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho