António Lobo Antunes

Um novo encontro com o escritor que acredita que quanto mais silêncio houver num livro, melhor ele é
01/11/2004

Comecei a escrever nestes blocos que eram os das receitas do Hospital Miguel Bombarda, do meu pai.

Além da esquina, sob o umbral de um prédio centenário lê palavras escritas e

Os meus pais não queriam que eu escrevesse. Portanto, eu tinha que escrever em folhas pequenas: tinha o livro de Geografia ou de História posto por baixo, ouvia os passos deles e trocava a ordem. Ainda hoje, escrevo com um livro aberto. Está aí. Para os adultos, eu era um fator de inquietação permanente. Os meus irmãos eram bons alunos, eu era o mau aluno. A minha mãe conta que foi pedir aos professores do liceu que me sentassem à frente porque eu estava sentado ao contrário nas carteiras. Ela dizia: “Tiras o curso, sempre te deixo com uma enxada”. Eu compreendo.

fica apenas esse tempo antes de entrar no restaurante e sentar na cadeira puxada pelo garçom negro e de sorriso contido.

Um escritor, um compositor, um fotógrafo que não tenha talento, a partir dos 40 começa a ficar muito amargo. Já reparou na quantidade de bares cheios de escritores que não escrevem, de pintores que não pintam? Penso que eles, à maneira deles, estavam a tentar proteger-me.

Abre o cardápio e

(quantas vezes é preciso escolher o que se sabe ser o seu valor como o soldado que sabe matar e não sabe se deve continuar a fazer o que tanto faz bem pois existem tantas outras coisas que poderiam ser feitas a contento e terem menores implicações e)

pede um copo de água mineral e algum gelo e passa as duas mãos sobre a toalha, esticando o tecido e retirando com cuidado qualquer ruga. Toca o vaso de cristal e vê o crisântemo tremer e no desviar do galho podado ainda cedo, hoje, enxerga uma bela mulher de rosto trágico e vestido vermelho, acompanhada de um homem dezenas de anos mais velho e a mulher nos seus trinta e poucos anos cumpre o respeito de apenas mordiscar uma torrada e beber curtos goles de vinho tinto, enquanto o velho glutão segue em sua ira pantagruélica como a querer devorar todo o estoque de embutidos do fino restaurante.

(duas horas depois, vou estar olhando o velho glutão enfiar a língua suja na boca contida da mulher de trinta anos e estômago retraído e vou lembrar pouco da conversa com Lobo Antunes, do mesmo modo que ele não se lembrou de mim e que isso realmente importa se daqui a pouco tempo, duas horas apenas, cada um terá ido para sua vida sem o outro?)

Enfia uma das mãos no bolso

Toda a minha construção mental foi feita para escrever. Eu mesmo me construí todo nesse sentido — para escrever.

e coloca sobre a mesa um pequeno gravador digital e o liga e pisca diversas vezes enquanto segue o movimento de poucas pessoas no frescor de um dia anormal em Lisboa, atulhada de sobressaltados europeus insistentes em supor na vetusta cidade um algo de uma Europa antiga e que hoje não mais se vê em outras capitais reconstruídas, renovadas, odorizadas com o fino perfume da modernidade decadente.

Mas os livros também são silêncio. Já reparou? Quando a gente houve o Sinatra cantar, o que o torna ainda mais extraordinário é o silêncio. Como aquele homem gere as pausas! Outro dia estava a ouvir [tanto quanto consigo ouvir] os Impromptus de Schubert, pelo Alfred Brendel, salvo erro. Aquilo está cheio de silêncio, meu Deus! Se calhar toda a arte devia tender para o silêncio. Quanto mais silêncio houver num livro, melhor ele é. Porque nos permite escrever o livro melhor, como leitor.

(Mia Couto disse que Lobo Antunes é louco)

Lá fora, homens de barba e barriga avantajada jogam porrinha. Dois deles estão sem camisa e um terceiro acende o cigarro pelo avesso e é avisado e ri e acende o lado certo. A fumaça que escapa sobe com o vento e ele ri sozinho do rosto de fome de um loiro que quebra o pescoço e parece babar à vontade do tabaco.

Com o passar do tempo, há dois sentimentos que desaparecem: a vaidade e a inveja. A inveja é um sentimento horrível. Ninguém sofre tanto como um invejoso. E a vaidade faz-me pensar no milionário Howard Hughes. Quando ele morreu, os jornalistas perguntaram ao advogado: “Quanto é que ele deixou?” O advogado respondeu: “Deixou tudo”. Ninguém é mais pobre do que os mortos.

A sombra do flamboyant toca a carroceria da caminhonete e suas flores sujam o capô e o vidro dianteiro com um tom vermelho alaranjado. Um pequeno gato preto descansa acomodado junto à roda traseira, com o corpo esticado em esse e a cabeça oculta pelo meio-fio. Duas andorinhas observam, pousadas no fio de telefone que escapa do poste do sobrado amarelo.

Eu gostaria de não ter magoado pessoas que magoei; não ter sido desatento em situações de amor [amor homem-mulher, amor com os filhos, amor com os amigos]; a pouca disponibilidade para as pessoas, por exemplo amigos doentes.

(Christian Bourgois, seu editor na França e grande amigo, foi diagnosticado um câncer há poucos meses)

Eu ia lá muitas vezes. Mas devia ir mais. Fui agora a Paris visitar o Christian. Fui lá uma semana só para o ver. Mas levei o “tricot”. Escrevia todas as noites como um danado. Não sei, espero que rezem pela minha alma pecadora.

Uma senhora trajando um vestido azul, enfeitado com rendas púrpuras na barra e de gola branca esvoaçando, tira a ponta da bengala do chão e cutuca a perna de um dos homens. Combinam endereço, tempo, preço, e o motorista veste a camisa e abre a porta do passageiro. As andorinhas voam e a cabine da caminhonete treme e o motor engasga um pigarro puro névoa de óleo diesel e o gato fica onde está até que um dos homens que ficaram segura-o pelo rabo e o atira na lata de livro do sobrado amarelo, sob uma ramagem de primaveras em flor.

Agora acho bem, mas mais tarde achava que devia ter esperado mais tempo. Não ter pressa. Que só devia ter começado a publicar a partir de O manual dos inquisidores [1996]. Eu era muito consciente de que o que fazia era muito mau. Mas também de que se trabalhasse muito, faria coisas que mais ninguém faria.

(Daqui a uma semana a velha senhora vai estar deitada de bruços em sua cama, de olhos arregalados e secos pois cinco horas antes sofreu uma embolia pulmonar e mal se deu conta que morrer podia ser menos duro do que supôs tantas vezes e mesmo assim)

Sinto uma consideração quase nula pelo que, em Portugal, se publica. Desgosta-me a infinidade de romances desonestos, entendendo por desonestidade não a falta de valor intrínseco óbvio [isso existe em toda a parte], mas a rede de lucro rápido através da banalização da vida. Livros reles de autores reles.

A caminhonete trafega sem sobressaltos e depressa o sangue fica sobre o asfalto e resseca e desaparece como se nunca houvesse existido nas veias do gato preto. Pára no primeiro cruzamento onde está alguém como eu e sou eu senão seria outro e eu realmente poderia supor o que pensava

O nível médio daquilo que se publica, seja onde for, é muito baixo. Esta é a verdade em todo o mundo.

(tantas vezes e tantas vezes achei que o tempo era pouco para tanto a ser feito; então supus que o tempo era muito para o pouco que restava a ser feito e hoje estou pior pois o torpor me diz que não tenho porque fazer o que quer que haja para ser feito)

As pessoas compram coisas que falam sobre o hoje e quando o hoje se tornar ontem já ninguém vai ler aquilo.

misturado às vozes e tubulações e novos prédios edificados nestes anos de desenvolvimento intenso e um pequeno operário, vestido com seu macacão amarelo olha para o sinal com tanta atenção que

Três do onze? Isso então é uma grande merda. Mas depois, ao mesmo tempo, no meio disto, há momentos de uma alegria tão grande… quase de êxtase. Parece que levita.

se perde quando abre e fica fascinado com a luz que escapa e mesmo os empurrões e eu indo adiante nada significo a ele, operário em seu macacão amarelo.

(vinte e sete anos serão precisos antes que nasça seu primeiro filho e a existência ganhe um significado de continuidade mas isso não impedirá de ser tarde demais e tudo o que lhe restará será o arrependimento pelas esperanças e sonhos que abandonou mais uma pitada de frustração com a visão de que sua mulher então não terá o rosto e o corpo tão belos quanto um dia supôs o serem)

Isto às vezes é tremendo porque a gente quer exprimir sentimentos em relação a pessoas e as palavras são gastas e poucas. E depois aquilo que a gente sente é tão mais forte que as palavras… Dizem que o Putshkin, quando usa a palavra “carne”, a gente sente-lhe o gosto na boca. A palavra carne é sempre a mesma, depende das palavras que se põem antes e das palavras que se põem depois. Para que as pessoas sintam o gosto na boca eu tenho que trabalhar como um cão, até encontrar as palavras exatas antes e depois. Mas quando eu estava a corrigir o livro senti que ele estava cheio de silêncio. E estava contente com isso. Se trabalhar muito no osso, despindo da gordura — adjetivos, advérbios de modo, proposições — acaba por chegar lá. Percebe o que quero dizer?

Centenas de pessoas seguem na mesma direção em trajes de gala, paletós de cortado liso e ombreiras perfeitamente caídas sobre ombros delimitados pela prevenção do gen. Na direção contrária, centenas de mulheres galopam seus saltos anabella e conquistam a frescura do vento sob saias recortadas de tecidos de trama high tech. Um garoto míope tenta acompanhar suas meias e não desiste apesar de ser constrangido a cada recusa a continuar no caminho de belas portuguesas.

(após a cirurgia, daqui a treze anos, não usará mais óculos e as paisagens terão cores e detalhes tão nítidos que será capaz de sofrer por saber que durante a adolescência, a época de maior fulgor de sua sensualidade, nada disso pôde usufruir de forma intensa e então terá esquecido dos odores e imagens adocicadas que teve sob a língua justamente porque)

Tenho uma certa desconfiança em relação à palavra pensar. Quando se está a escrever, podemos pensar enquanto indivíduo. Mas enquanto escritor… Sempre me fez confusão as pessoas que dizem: “tenho um livro na cabeça só me falta escrever”

(quero ir embora, me intimida um homem que escreva tanto e mesmo eu que supunha escrever tanto não sou capaz de editar esse tanto, apenas me perdendo em minhas próprias intenções e constantes correções e cada dia me parece mais torto o meu caminho, como o tronco aflito pela seca de dez anos e que mesmo assim insiste em manter-se vivo sob a casca ressequida e um miolo rígido e sem viço)

O garçom o leva até a mesa e se cumprimentam com um aperto de mão. Lobo Antunes ajeita o aparelho de surdez e

Uma coisa é o amor, outra é a relação. Não sei se, quando duas pessoas estão na cama, não estarão, de fato, quatro: as duas que estão mais as duas que um e outro imaginam.

coloca sobre a mesa um pequeno bloco cheio de anotações.

Não tenho pensamentos abstratos quando estou a escrever. Estou tão preocupado a fazer o livro que nem sequer me pergunto o que é que isto quer dizer, nem sequer pergunto o que estou a escrever. Às vezes nem sequer sabemos se estamos a acertar no papel. Só quando se começa a trabalhar é que se vê se acertamos ou não.

(me apresento e falo meu nome e digo que já nos encontramos e ele continua na mesma e penso que talvez devesse ter ficado em Paris, escrevendo o que continuo a escrever sem chegar a lugar nenhum pois tenho sérias dúvidas se adianta alguma coisa estar aqui olhando para o rosto deste senhor se)

Antes planejava muito, mas agora parto de um detalhe, de uma cor, algum som… As palavras crescem e o livro se forma quase sozinho. É tua mão que faz o trabalho e a cabeça não faz mais que vigiá-la. O livro sempre escreve melhor que você. E graças a isso descobres outras realidades: tuas obsessões, tuas vísceras ou essas emoções inefáveis que é preciso cercar com símbolos. Como psiquiatra sempre me fascinou a forma com a qual a mente permite criar realidades diversas, e agora aproveito essa bagagem em minhas novelas.

(Portugal comemora os vinte e cinco anos de lançamento de Memória de elefante)

O Adelino não encontra quem escreva como eu. Agora dizem todos isso. Naquela altura era eu sozinho a dizer para mim mesmo. E com vontade de dizer “não, porque eu só faço porcaria”. Na minha geração, eu lembro-me de sair A paixão, de Almeida Faria [1965] e eu com 19 anos a pensar “nunca chegarei aos calcanhares deste homem’; ou os poemas da Luíza Neto Jorge; ou os poemas do Gastão Cruz, sei lá, tanta gente publicava, e todos eles eram melhores do que eu.

(seu último livro passa a ser Eu hei-de amar uma pedra)

Foi trabalhar, trabalhar, trabalhar. Porque para mim a coisa era clara: eu não tenho nenhum dom natural, mas não posso fazer a minha vida sem isto. Também não tinha vivido [ainda, naquela altura]. Tinha a sensação de ter muitos quartos, mas que só vivia em dois deles, não abrira as outras portas e janelas.

(alguns meses depois, no fastio de minha imaginação, aqui estou eu dando os últimos acertos no texto que, mais uma semana, estará em suas mãos. E que isso importa?)

Eu nunca tive sonhos de glória nem de reconhecimento. Aos 14 anos tinha.

O último prato é retirado e o menino míope sumiu do ângulo de visão.

Mandam-me muitos manuscritos. O que é que esperam? Que eu os leia à segunda-feira, que lhes diga que são bestiais à terça, que na quarta sejam publicados e na quinta tenham reconhecimento universal. Escrever não é isto.

O velho glutão deixa o café esfriar e perde-se enfiando a língua suja na boca contida da mulher de trinta anos e estômago retraído.

Mas o que me aconteceu ultrapassou aquilo que podia imaginar. Quando saiu o primeiro livro eu era um inocente: não conhecia um único escritor, não sabia como é que uma editora funcionava, sabia lá o que era um agente. Caio de pára-quedas aos 36 anos num mundo que me era completamente desconhecido. Quando o livro saiu, eu fui de férias. Quando voltei (já estava a escrever o terceiro livro) era famoso. O livro estava em todo o lado, vendia imenso, fizeram-se várias edições, e eu ia à noite — tinha vergonha de ir durante o dia — espreitar as montras da Baixa e ver o meu nome impresso. Só o tinha visto nas pautas.

Nenhum carro de aluguel espera clientes e a calçada está tomada por carros de passeio, modelos novos e acumulados em filas apertadas.

Quem escreve está a desembaraçar-se. Está a desembaraçar-se de alguma coisa.

Lobo Antunes se despede. Várias gotas de molho de tomate marcam sua camisa azul clara.

(pergunto se pode me responder uma última pergunta, mas não me escuta. Passa pela vidraça, pisando a calçada como se fosse ninguém mais)

Um gato preto senta junto ao meio-fio e parece observar o movimento.

(tem dias que nada faz sentido)

As pessoas param frente à vidraça. Costas para mim.

(então percebo, há dois sóis ardendo no céu de Lisboa)

Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho