Alan Moore

A conversa com um gênio das histórias em quadrinhos
Alan Moore
01/03/2005

Tem coisas que não são exatamente como parecem,

Eu descobri os quadrinhos quando tinha mais ou menos sete anos; isso aconteceu aproximadamente em 1959 ou 1960.

desandam a vida com as pernas entre as pernas e procuram escurecer o que se poderia ver além do que se pode ver. Covardia, cidadão, covardia pura e simples. Posso ler mil livros de filosofia ocidental e pensamento oriental e dá no mesmo. Veredas que

(não vou torrar o saco de ninguém com os tais cogito, ergo sum e calhordices do gênero. Se morreram os grandes sistemas — arre, Heigel! — quem sou eu para)

Foda-se! Duas coisas, cara,

eu sempre trabalho em roteiros completos — e não apenas roteiros completos, mais do que completos. Meus roteiros são gigantescos. Eles são enormes montanhas de detalhes e descrições que os artistas são livres para ignorar quando quiserem.

odeio isto tudo e um pouco mais. Odeio esta merda de Estados Unidos, odeio Nova York, odeio o aeroporto John Kennedy, detesto esse sotaque anasalado que me faz esperar, a qualquer momento, que cuspam em minha cara. E — suprema das heresias — odeio Francis “fim da história” Fukushima, Susan “contra a interpretação” Sontag, Noam “um mundo melhor” Chomsky, e se querem me crucificar, que crucifiquem, odeio Michael Moore e todos os Bushs, mesmo aquele que ardeu na frente de Moisés. Se querem saber

estou tentando produzir trabalhos adequados ao meu tempo, e uma das coisas que caracterizam o nosso tempo é a saturação de informação

Urrrrrrrraaaaaaaaaa!

lendo O arco-íris da gravidade, de Thomas Pinchon, pela primeira vez fui alertado que sim, você pode trabalhar com esse tipo de complexidade e riqueza. Pinchon foi uma autêntica voz do século 20, adequada ao seu tempo; o mesmo pode ser dito de escritores como Joyce e Iain Sinclair

Eu vou embora

eu tenho tentado realizar o mesmo trabalho. Conexões são muito úteis. Inteligência não depende da quantidade de neurônios que temos em nosso cérebro, depende da quantidade de conexões que podemos estabelecer entre eles

e isso vai me resolver noventa por cento dos problemas. Cem por cento só se o avião cair. Não estou em Noves fora York nem dois dias e já sinto como um iraquiano currado por uma centena de soldadas americanas. Olhos vendados, mãos amarradas às costas. Ela de calça de camuflagem cáqui, sutiã branco — mantendo o decoro —, cabelo tipo Jeannie é um gênio. Hummmmmmmmmm! Existe uma obsessão hollywoodiana pela cena.

gostaria mais disso se fosse mais elaborado

(dizem que não sai da cama faz dez anos; que toma chá com Aleister Crowley toda terça; que é procurado pela CIA; que sacrifica coisas em seu subsolo; mas a verdade é que se tornou um performer multimídia adepto da magia e da alquimia. É fato)

as pessoas não aprofundam suas fantasias o bastante. Eles podem aparecer com melhor material. Eu provavelmente não ouço a maioria desses rumores porque eu tendo a ficar em minha boa — bem, eu não posso dizer normal — minha levemente inusual casa com terraço em Northampton

Desembarco e vou direto para Trafalgar Square. Não que eu ame Londres, longe disso, mas é aqui que eu devo estar para fazer o que eu devo fazer. Pois

a razão por que não visito a América é que eu não renovei meu passaporte, e se quer saber não parece que isso seja algo que eu possa me ver fazendo no momento

coloco o pé na terra da princesa consorte

(alguém já pensou no significado dos nomes e sua confluência com a vida do indivíduo? Camila Parker-Bowles? O que significa realmente isso?)

É uma sensação de mal estar convicto, se é que me entendem. Sabe, a coceira que não dá para coçar. Na verdade eu deveria voltar para o Brasil, comprar uma chácara e me dedicar a plantar tomate sem agrotóxico. Assim, quem sabe, eu seria mais feliz.

(a quem eu engano? Estou parecendo Leandro e Leonardo catequizando sobre as maravilhas da vida de tomateiro e dito isso)

o corpo é um de nossos primeiros referenciais para metáforas. Um dos motivos pelos quais criamos a linguagem é para falar sobre coisa que não nos são familiares em termos que nos são familiares. Muitas das metáforas que usamos vêm de nossos corpos. É claro,

(claro)

Pego o metrô e sigo para PortoBello Road. A multidão está como deve ser. Finais de semana é isso. Gente tirando fotos na porta azul que foi filmada em Notting Hill e jamaicanos tocando enquanto branquelos ingleses tentam saltitar no ritmo.

(como odeio isso. Na Jamaica, eles pelo menos têm a desculpa da maconha)

em magia, eu estou interessado em assuntos como esse. Qualquer parte do corpo tem seu próprio significado simbólico. Várias partes do corpo, como os órgãos sexuais, têm um significado profundo em muitos sistemas e culturas.

Algo tolo. Odeio esta sensação de que algo está faltando, porque não está. As coisas estão exatamente onde deveriam. Esta sensação ruim que me persegue faz dias, de certo modo

apatia é a chave para muitos de meus comportamentos. É a razão de eu manter esta barba ridícula e este corte de cabelos. É simplesmente preguiça. Eu prefiro sentar e escrever meus tolos quadrinhos ou compor algum novo e incompreensível tratado de magia

posso dizer que sou um cara de sorte, senão, vejamos, como poderia ser de eu estar aqui na terra dos Sex Pistol’s e The Clash, vestindo uma calça jeans 501 Levi’s, camiseta do Corinthians, com os pés protegidos dentro de uma botina candangueira e perfeitamente oculto deste inverno antecipado com um casaco de policial da KGB? Tudo bem que estou, pra variar, sem um puto no bolso. Na pressa de escapar da porcaria da terra das oportunidades, nem me preocupei em receber o último salário que, enfim,

(lavei pratos durante duas semanas em um restaurante armênio no Brooklin. Eles não me entendiam xingar, eu não sabia quanto iria receber, o que, no final das contas, deu na mesma)

merda. Com o estômago roncando pergunto pela Harry’s Arcade, uma loja de antiguidades. Com o rosto assustado, dois me respondem ser armadilha para turista. O terceiro

— PortoBello Road, 161/163.

a vida real em qualquer cultura acontece em suas margens. Eu concordo com o que a brilhante, divina, maravilhosa Ângela Carter disse sobre os vencedores do Booker Prize; eu acredito que ela se referiu a eles como vítimas das listas, o que eu penso que define bem. Os mais interessantes escritores são aqueles que com pouca freqüência são citados para prêmios, pois são considerados muito vulgares

Jeremy, um senhor de cento e poucos anos me atende e

(apesar dos constrangimentos que isso irá me causar, devo admitir que ele me assustou. Ao se aproximar, veio caminhando lento e com as costas tão arcadas que achei que era mais um daqueles velhos ingleses pederastas, doido para um boquete rico em proteínas antes do almoço)

me pergunta se vim procurando as ofertas do fim de semana. Respondo que não, que vim encontrar um conhecido. E aproveito para descrevê-lo

— Pode esperar, diz sem disfarçar decepção

e acabo sozinho na porta advertido de que existe um sistema de vigilância na loja que mais que apenas impedir roubos, diminui a quantidade de ladrões. Só que por mais que procure não vejo as câmeras, muito menos

Michael Moorcock escreveu a maravilhosa Mother London. Uma dos mais impressionantes romances londrinos já escritos. Mother London é um tour de force; é a melhor coisa que ele já escreveu, mas não há chance de Moorcock ganhar alguma respeitabilidade literária porque

Para quem não conhece, Alan é um cara com quase um metro e noventa e que escapou de Alcatraz em uma moto Harley Davidson, carregando na garupa Aleister Crowley e madame Blavatsky. No meio do caminho entre Birminghan e Los Angeles, largou os dois e montou uma barraquinha de beira de estrada na qual oferece ritos mágicos e vende camisetas do Black Sabath. Nas horas vagas, faz performances e escreve romances hiperfantasiosos e roteiros para HQs não menos viajandões.

muitas de minhas idéias atuais tendem a ser carregadas de um colorido ponto de vista mágico.

Alan está interessado em máscaras rituais africanas e anéis com efiges introjetadas diretamente na carne de quem os usa. Remexe um conjunto preso unido feito corrente de anéis de madeira. Com cuidado, puxa um deles e tenta enfiar no dedo mindinho.

(um rapaz negro entra e pergunta pela oferta da semana. Jeremy o leva para os fundos e pelo espelho vejo que entram no escritório e)

Resmunga que parece feito para mãos de crianças. Jeremy, sozinho, confirma tomando a pequena peça esculpida no formato de uma serpente píton reticulada a estrangular um chipanzé.

– Ainda estão aqui? Sim,

pessoas gostam de Iain Sinclair, que é, eu penso, talvez um dos melhores escritores em língua inglesa vivo e trabalhando. Seus livros não são fáceis de ler. São densos com muita informação por página

Sentamos no canto da janela que dá para a rua, em um banco que um dia esteve no quintal de Lorde Nelson. A madeira que serve de encosto foi trabalhada a partir do tronco de uma única sequóia, vinda da América, presente de um admirador. Dois brasões subscritos confirmam o fato e anunciam o quanto a árvore sacrificada deve sentir-se honrada por servir a um homem de tamanha magnitude. Se ela soubesse que um dia estaria apoiando minha bunda e a de Alan, talvez preferisse ter vivido até o final de seus dias em alguma floresta do novo continente. Alan ri

— Tem uma lenda urbana que afirma que Nelson é um vampiro de almas e reside aqui em Portobello

e acrescenta que

a cultura nos predispôs a receber a informação pré-digerida e pré-pronta, e mais, como uma regra, tende a fugir envergonhada de qualquer coisa que não tenha sido simplificada ao nível que qualquer um possa entender. Este não é o trabalho de um artista ou criador, ainda que se você observar o sistema vai perceber que não é isso que as pessoas estão fazendo para se manterem populares. Eles conhecem suas audiências, e

Enquanto conversamos, Jeremy atende os fregueses e mostra as peças à disposição e circula pela loja e quando o visitante está só, entra com ele no escritório e volta apenas quando o sino da porta trina novamente anunciando a chegada de outro cliente. Sempre que volta parece um tanto diferente. Um pouco menos arcado, um tanto mais cabeludo, a pele levemente mais esticada e, sinais dos sinais, a voz cada vez mais forte. Prestaria mais atenção ao fato se não soubesse que

eles sabem se estão empurrando os botões certos e na direção correta a fim de criar outro sucesso ou o que seja. Eu estou muito contente e satisfeito com este tipo de estranhamento, gueto underground no qual tenho estado metido.

está chegando a hora de ir.

Este é um lugar maravilhoso, onde você encontra muita gente boa.

Alan responde que antes de sair precisa ir ao banheiro.

Vindo de sabe-se lá onde, Jeremy pergunta se tenho interesse por armas e me convida a ir ao seu escritório. Seguindo-o, penso se aquele é o mesmo Jeremy que me recebeu. Muito mais jovem, caminha ereto e não usa bengala. Por um segundo, penso em dar meia volta, mas já estou com um pé no escritório, onde a luz é pouca, quase nada, nada em mim, exceto a vaga esperança de que a magia de Alan seja poderosa o bastante para me salvar do que quer que me espera.

Eu sinto que nós estamos nos aproximamos de um ponto de fervura cultural. Eu não digo que isso seja uma coisa boa ou má. Eu penso que estamos nos aproximando de um ponto no qual a quantidade de informações que temos é exponencial, e eu não estou certo de que tipo de cultura humana irá existir além deste ponto.

Meu último pensamento é um nome: Camila Parker-Bowles.

Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho