Uma ideia de ensaio (2)

O ensaio tem de saber parar antes de tornar-se um método geral de análise
Ilustração: Kleverson Mariano
24/12/2018

Falei-lhes na última coluna de como o crítico português Abel Barros Baptista, num texto de seu livro De espécie complicada (Coimbra, Angelus Novus, 2010), costura uma ideia de ensaio em oposição à de teoria, usando como ilustração o que se passa no célebre conto A carta furtada, de Edgar Allan Poe. Nesse conto, como vimos, o Inspetor-Chefe da polícia parisiense e o detetive-intelectual Auguste Dupin efetuam dois métodos de investigação bem distintos. O Inspetor-Chefe tinha uma teoria, altamente metódica e baseada em processos quantificadores, enquanto Dupin tratava de pensar o caso como acontecimento único, atentando para as suas circunstâncias de tempo, lugar e, sobretudo, para o temperamento das pessoas envolvidas. Isto fazia com que o trabalho de investigação de Dupin, na perspectiva de Baptista, se aproximasse da ideia de singularidade da invenção literária, muito mais que de processos de sistematicidade e previsibilidade pressupostos na teoria científica. Disso tudo, entretanto, já falei na coluna do mês passado, e apenas o rememoro brevemente para os que não a puderam ler.

Hoje, gostaria de explorar o conto de Poe em duas novas direções que, a meu ver, complementam aquela explorada pelo crítico português.

A primeira delas acentua o fato de que o ato intelectual próprio do ensaio crítico em Literatura guarda um apego inegociável com a obra de arte estudada, com a irredutibilidade de sua forma, de tal modo que ele não atribui interesse maior à produção de uma metalinguagem que se sustente fora da própria obra. Dito de outra maneira: a imaginação objetiva suposta no ensaio apenas pode durar ou vigorar enquanto parasita a experiência da própria obra. Tudo o que leva o ensaio para fora dela, seja uma teoria autônoma ou um diagrama quantificado, enfraquece notadamente a interpretação que propõe.

Quero dizer com isto que o ensaio tem de saber parar antes de tornar-se um método geral de análise, pois isso mesmo — o metódico genérico — tende a aliená-lo da obra de arte que gostaria de elucidar; vale dizer, uma solução teórica do enigma que a obra apresenta não poderia ser satisfatória. Na contramão dessa atitude, o ensaio busca o que a obra tem de mais singular, o que apenas pode ser concebido com base na dramatização de uma relação pessoal e intransferível com ela. Nesses termos, “interpretação” da obra e “intervenção” na singularidade da obra significam basicamente o mesmo.

E se é verdade que a situação atual da Literatura parece indicar a falência de quase todos os pressupostos que julgávamos mais sólidos nela —, como exemplarmente o de que os estudos literários deviam ser incentivados pela sociedade, uma vez que eram fundamentais para a formação de um espírito livre e o exercício da cidadania —, também parece verdadeiro dizer que o presente estranho, perturbador e desconfortável para quase todos nós, pode ajudar paradoxalmente a perceber o que sempre foi fundamental, mas que talvez fosse menos evidente num tempo de normalização teórica e de maior confiança na metodologia para dar conta de qualquer questão. E o que é fundamental, quando se trata de crítica literária, é que a inteligência não descobre nada alheio ao seu próprio envolvimento no jogo que estabelece com a obra.

A segunda questão que gostaria de derivar da situação proposta por Abel Barros Baptista diz respeito ao fato de que, a meu ver, o movimento decisivo do ensaio vai no sentido não de um mapeamento exterior da obra, tomada como objeto, mas de um gesto do intérprete, tomado radicalmente como autor da questão que pretende discutir. Para esclarecer essa afirmação, valeria a pena retomar o conto do Poe e evidenciar nele um aspecto que costuma passar tão despercebido para os seus leitores como a própria carta roubada para o Inspetor-chefe

A lermos bem a intriga do conto, podemos perceber que Dupin não apenas resolveu o caso objetivo, descobrindo onde estava escondida a carta roubada pelo ministro ambicioso, mas também vislumbrou a chance que há muito esperava de se vingar dele, por conta de uma disputa anterior travada entre eles na qual Dupin levara a pior. Desta vez, entretanto, Dupin dá-lhe o troco, já que descobriu onde estava a carta, frustrando os planos do ministro, e ainda ganhou o dinheiro da recompensa por tê-la recuperado. Mas não se trata apenas disso: Dupin ainda se deu ao luxo de deixar na cena do crime um indício claro ao ministro “a respeito da identidade da pessoa que o tinha excedido em astúcia”. Frente a essa revelação, quando lhe perguntam se havia deixado alguma carta pessoal endereçada ao ladrão no lugar da que fora furtada, Dupin responde que lhe bastara deixar uma carta com dois versos transcritos nela, o que seria suficiente para identificá-lo aos olhos do astucioso ladrão, pois, como explica: “Ele conhece muito bem a minha letra”.

O conto termina, portanto, não com a recuperação da carta, objetivo que até então mobilizara a polícia, mas com uma espécie de assinatura de Dupin: a sua própria letra, estritamente pessoal, a evidenciar que vencera o duelo de inteligências que se travara ali. Ou seja, Dupin não apenas elucida o enigma, como constrói uma autoria: aquela intervenção fora sua, de ninguém mais, e o antagonista deveria reconhecê-lo para que a sua vitória se efetuasse por completo. Dupin, portanto, não é apenas o detetive que resolve o caso, mas o nome que se inscreve no cerne do jogo, que o assina afinal, dando-lhe uma configuração indistinta de sua própria intervenção.

Pois é exatamente essa ideia simples que gostaria de deixar aos leitores que fizeram a gentileza de chegar até aqui: nada substitui o ensaio enquanto atividade primordial de crítica literária, porque ele significa o reconhecimento da singularidade da forma, como vimos em primeiro lugar, e também porque é próprio dele inscrever uma autoria única dentro dessa forma. Vale dizer: o ensaio implica no movimento de criação de uma autoria no âmbito mesmo da questão a ser investigada, o que, por definição, implica em retirar o caso da regra, do genérico, e devolvê-lo a uma situação única na qual o investigador tem de encontrar o seu papel, produzir uma assinatura, criar uma autoria para si.

Nessa perspectiva, um ensaio bem-sucedido é menos uma explicação de um problema anterior do que a constituição dramática da autoria de um problema. A autoria é precisamente o que torna a atuação de Dupin coerente com a sua intervenção no caso, pois, em analogia com a natureza do ensaio, ela só adquire sentido pleno quando revela uma assinatura, o que é bem diferente da ação do Inspetor-Chefe que se dissolve no método, no procedimento, na rotina.

A meu ver, portanto, é a autoria que legitima o ensaio crítico em Literatura. E quando digo isso, quero dizer que, no final das contas, um ensaio crítico não tem o mesmo escopo de uma “teoria” ou de uma “pesquisa”, pois, nele, nunca se tratou essencialmente de metodologia, de análise ou de corpus, mas sim de conquistar uma autoria reconhecível, deixar uma marca algures que os outros, competentes na atividade literária, não podem deixar de reconhecer.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho