Um vigarista chamado Jorge (final)

Livro de Jorge Mautner é uma narrativa desbundada, que implica impulsos juvenis, erotismo maximalista, influência das drogas e um humor peculiar
O músico e escritor Jorge Mautner, autor de Vigarista Jorge
01/06/2024

Como disse antes, Jorge é admitido na guerrilha e recebe do seu novo líder, como símbolo de sua iniciação, uma metralhadora. Se ele a sabe usar, não está claro, mas é certo que a arma de fogo confirma a sua escolha socialista, ou antiburguesa, porque tampouco é seguro que ele saiba de que socialismo se trate.

Uma vez na guerrilha, portanto, o relato está pronto para acolher uma personagem que cai nele de paraquedas: de repente, vindo em sua direção, surge Josefina, o grande “amor socialista” da vida de Jorge, que também está na guerrilha. Ao se verem, são tomados de uma grande alegria e se beijam, selando o encontro feliz no qual o amor e a política revolucionária se fundem e se completam. Tudo parece se encaixar de modo favorável à busca místico-social-amorosa de Jorge.

O encaixe, entretanto, não é tão perfeito assim. Ao beijar Josefina, o neoguerrilheiro sente que a metralhadora o atrapalha, e, sem pensar, a atira ao chão. Leva então uma tremenda bronca do chefe dos guerrilheiros, que o adverte para não deixar que a metralhadora se suje, e também para não namorar “em serviço”! É outro desses momentos hilariantes do romance: mal ele ingressa na luta armada, o seu foco é desviado para uma namorada, e, por causa dela, se livra da arma, se esquece da luta, do treinamento, e de qualquer outro propósito que não seja o de beijá-la. Primeiro, o amor, depois a luta ou a labuta. E então se evidencia aí, uma vez mais, o caráter “vigarista” — farsesco, humorístico, podíamos também dizer — da adesão revolucionária do narrador, que aqui é identificado com os traços biográficos de Mautner: “Ah!” — exclama ele, entre consternado e admirado consigo mesmo: — “Estes vigaristas escritores compositores eslavos-judeus-brasileiros!”.

É assim que, com esse suspiro de Jorge, autodescrevendo-se com ironia condescendente e satisfeita, acaba a Introdução do volume. Não pretendo ir além dela, nesta aproximação de Vigarista Jorge, pois as seis colunas que lhe dediquei neste Rascunho bastam para esboçar as principais características da narrativa de Mautner. Entretanto, para finalizar este esboço de abordagem, vamos recapitular um pouco o que se passou na Introdução que pudemos acompanhar.

De início, há esse narrador-protagonista que perfaz um caminho aberto em busca de alguma resposta para a existência. Ele a procura no âmbito de uma percepção mística, que atribui então à figura do “feiticeiro” — uma mística que logo se dissolve numa concepção filantrópica, que atua para ajudar as pessoas carentes, e que, como qualquer filantropia, não pretende conscientizar os pobres de nada. Das condições injustas de sua pobreza nada diz, cuidando apenas de influenciá-los psicologicamente de maneira positiva a fim de que sentissem uma melhora em suas vidas e ganhassem ânimo para seguir em frente.

Nessa via do misticismo filantrópico, o movimento seguinte é o de articular o bem-estar das pessoas atendidas com a experiência familiar do feiticeiro que as atende, pois é isso o que Jorge experimenta quando passa a viver com o velho feiticeiro e o casal de crianças que adota. Digamos que o bem que Jorge passa a praticar é, em parte, fruto dessa relação harmônica que encontra dentro de seu próprio barraco.

Num momento ainda posterior, essa via pseudomística entra em colapso, seja pela decepção com os excessos afetivos que suscita, a ponto de matar uma paciente despreparada para tanta boa notícia, seja pela repressão policial, que vê com desconfiança a aliciação suscitada por esse tipo de prática medicinal heterodoxa.

A quebra da via místico-filantrópica dá espaço para uma nova inquietação, desta vez política: uma política antiditatorial, ou ainda mais genericamente, antiburguesa e antinormativa, que leva Jorge a aderir à guerrilha. Mas, como é fácil perceber, não se trata de uma adesão muito convicta. Tem mais jeito de fogo de palha, isto é, entusiástico, bem-intencionado, mas não muito consistente. De modo que, diante da visão de uma antiga namorada, um suposto grande “amor socialista”, logo abaixa as armas, para agarrar a ela.

Percebe-se aí que, do imaginário da revolução, Jorge adere menos à ideologia ou à ação coletiva do que ao amor único da namorada. É esta a sua causa final, não a luta social. Não é que não desejasse a revolução, ele a deseja porque é jovem e tem um corpo excitante: “(…) isto é bárbaro demais! Revolução assim é um sonho! Ah! Josefina guerrilheira! Meu Deus!”. Até Deus se ajunta ao bando, quando o corpo é jovem e o tesão não é pequeno.

Nessa sequência de escolhas em cima da hora e de sensações à flor da pele, a novela parece se filiar a alguma variante aloprada de romance romântico, no qual o tema do reencontro de um grande amor do passado se agrega a um ideal revolucionário, juvenil e impetuoso, em favor de um futuro socialista. E socialista apenas no sentido de generosamente extensivo a todos; socialismo como nome de um conjunto de boas intenções, mas não como referência a estudos doutrinários particulares e, muito menos, como submissão a uma agremiação rigidamente organizada como o Partidão, ao qual Mautner diz ter pertencido.

Não é tampouco um romance de formação ou de aprendizado, pois, na estrada da vida, Jorge não aprende nada: ele reage à ocasião e à fortuna, mergulhado em sonhos misturados de amor, poesia e revolução. Nada muito diverso do imaginário hippie que começa a se espalhar à época.

Essa combinação de elementos díspares, e mesmo contraditórios, como o individualismo sentimental e a cartilha socialista, é feita bem à vontade, sem pudores ou grandes culpas, de modo que a justaposição aleatória e confusa toma por vezes a aparência de sonho ou talvez de viagem psicodélica. Obviamente essa forma final caótica, um tanto rascunhada, não combina nem com a busca densa e emocional do romance romântico, nem com a adesão consciente e militante a um programa político realista. Mais verossímil é mesmo a hipótese de uma narrativa desbundada, que implica, entre outros ingredientes, impulsos juvenis, erotismo maximalista, influência das drogas, e um humor peculiar, literalizante, análogo ao do absurdo e do nonsense.

Josefina, a musa socialista, que acaba arrebatando o amor de Jorge, sequer estava na história até aí. Quer dizer, Mautner puxa e suspende fios narrativos, sem preocupação de sistematizá-los ou unificá-los, enquanto vão se desenvolvendo em diferentes caminhos alternativos. Desse ponto de vista, o trabalho de reconstituir, como estou tentando fazer, o enredo da narrativa é um esforço inútil. Não é o que vem antes, mas o que está depois é que tem precedência na narrativa. No conjunto, há menos nexo do que coleção de eventos, vários deles autobiográficos, com relações mais ou menos arbitrárias entre si. Também não compõe um diário, pois falta a ordenação cronológica e a anotação objetiva do dia. Assim, talvez fosse mais justo esquecer o enredo e falar em fluxos narrativos que avançam e refluem como maré, deixando reaparecer na praia da página vestígios de uma festa de arromba anterior. Mautner deve ter estado nela, nós não.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

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