Um vigarista chamado Jorge (4)

O personagem de “Vigarista Jorge” busca contribuir, por meio de sua arte do engano, para a efetuação do comunismo no país
O músico e escritor Jorge Mautner, autor de “Vigarista Jorge”
01/04/2024

A arte da feitiçaria, da forma como é apresentada por Xorin, diz respeito a uma ação puramente psicológica, que funciona como um placebo, ou algo assim, que muda a disposição psíquica do paciente, mas sem ter poder efetivo ou autônomo de cura. No fundo, equivaleria a uma trapaça, apenas que orientada pelo bem e pela empatia com os doentes e sofredores.

Após a revelação da boa vigarice, Jorge, a menina e Xorin se dirigem, juntos, à “casinha” do velho — evidenciando a sua pobreza ou, enfim, a sua vida alternativa ao ambiente burguês, que parece ser o mais conhecido de Jorge. O velho lhes confessa então que desistiu totalmente de se passar por feiticeiro, apesar das boas intenções com que o fazia, por conta de um grande fracasso, quando tentara inutilmente salvar a vida de um menino. O transtorno de Xorin com o caso foi tal que ele acabou por enterrar o menino atrás da própria casa. Espantados por essa revelação, Jorge e a menina acompanham Xorin para ver o túmulo do menino.

A cena, a partir daí, toma tons, digamos, vagamente góticos. Impressionados pelo relato e pelo túmulo próximo, ao dormir, todos eles sonham com o menino morto, e o sonho de cada um — ou da personagem única, que é afinal o narrador, com as suas várias emanações de criança ou velho — gera novos desdobramentos deles mesmos. Me explico melhor: em primeiro lugar, Jorge, que busca ser auxiliar de feiticeiro, sonha que, no túmulo do menino, apareceu uma bandeira vermelha que seria a dos “Estados Socialistas Brasileiros” — e está claro que há nisso uma provocação bem-humorada aos militares, feita entretanto com uma suposta seriedade ingênua, a ponto de parecer uma fábula, com seu tipo característico de ambiente de suspense. O nome do país obviamente ecoa o da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, e revela uma espécie de sonho comunista brasileiro. O sonho revela portanto que, enquanto auxiliar de feiticeiro, essa seria a missão de Jorge: contribuir, por meio de sua arte do engano, para a efetuação do comunismo no país.

Ainda, no sonho de Jorge, junto ao túmulo do garoto, aparecem prédios de plástico e também uma “máquina atômica”, usada para ressuscitar o menino. Ou seja, surgem aqui, lado a lado, a tecnologia e a bandeira socialista: estes dois elementos, aplicados conjuntamente sobre o menino, fazem com que ele seja ressuscitado. Uma nova vida para as crianças brasileiras é entrevista a partir dessa conjunção de forças progressistas. Há aqui, portanto, um esquema de um sonho feliz de futuro, em que a tecnologia e o comunismo se juntam para regenerar a vida, não apenas o país. Trata-se quase de um conto de fadas tropical-industrial-socialista, por assim dizer.

E também a menina sonha com a ressurreição do menino, apenas que, aqui, é introduzido no sonho um componente romântico, ou sentimental, que não havia no do protagonista. O garoto revivido a pede em casamento e a beija, à maneira de um happy ending hollywoodiano. Às garotas, sonhos cor-de-rosa, ou de cores leves e sentimentais, digamos.

E finalmente também Xorin sonha com a ressurreição do menino, que é alguém idêntico a ele. Ou seja, o velho feiticeiro sonha com o seu próprio rejuvenescimento, ficando claro que a fábula narrada, ainda que tingida de conotações fúnebres, é um gênero fértil e adequado para que, nela, se projetem os desejos de todos eles. Em resumo: Jorge quer o socialismo utópico para o Brasil; a menina quer se casar apaixonada com o seu jovem parceiro; e o velho quer de volta a juventude perdida sem memória dos malogros da idade.

Depois de contarem uns aos outros os seus próprios sonhos com o menino, ouvem batidas à porta e, ao atender, deparam-se com ninguém menos do que o próprio menino morto, em espectro ou em pessoa, pois, de alguma forma, ele havia ressuscitado ou se materializado com base nesse desejo coletivo manifesto nos sonhos. Não é, advirto, um momento em que a narrativa pregue um susto no leitor. Não há a menor insinuação de temor sequer, pois não há tampouco traço de verossimilhança ou de suspense. É uma sequência que parece apenas engraçada, pela quantidade de coincidências acumuladas.

Em termos interpretativos, o que se poderia pensar é que o desejo comum restaura a vida, ou institui o sonho em vida. É a força da mentalização positiva coletiva, poder-se-ia dizer. Entretanto, não é tão simples. O menino revém, mas não para que vivam todos felizes e sim para lhes pedir que voltem a fazer feitiçaria e que a usem para salvar a mãe dele, que se encontra moribunda ali perto. De alguma forma, o sonho comum de restauração da vida feliz não faz mais do que reiterar o desejo inicial do protagonista de se tornar um auxiliar de feiticeiro. Ou seja, a narrativa avança para ficar no mesmo lugar: o da reafirmação do desejo de Jorge de se tornar feiticeiro.

E a ocasião conspira para que o jovem aprendiz se torne o feiticeiro titular, já que o velho, escaldado pelo fracasso anterior relativo ao próprio menino, recusa-se a retomar a antiga prática. Então Jorge ocupa o lugar do feiticeiro, e vai com a filha recém-adotada até onde está a mãe moribunda do ex-menino morto. É curioso isso: haja morte em família para fazer vingar o desejo comum!

Ao encontrar enfim a mãe moribunda — outra personagem a morar num “barraco miserável”, que inda por cima “fedia” —, o narrador se apresenta como sendo ninguém menos do que o pai do menino, que finalmente voltou para ficar para sempre ao lado dela e dos filhos. Serão finalmente uma família feliz padrão, com pai, mãe e um casal de filhos! Como se percebe, os eventos são todos inusitados e banais ao mesmo tempo, uma mistura que deveria concorrer para a “cura”, pela ação do “amor” e da “amizade humana”.

Jorge então tenta curar a moribunda por meio da invenção de um verdadeiro idílio familiar à maneira de propaganda de TV dos anos 60, o que parece impossível tendo como contraponto um quadro de abandono da mulher pelo marido e a morte precoce do seu filho. Algo na sequência deve ser interpretada como uma alegoria da situação da população brasileira mais pobre, na qual as mulheres são abandonadas com o filho por criar, e as taxas de mortalidade infantil são muito altas. Nesse contexto, Jorge tem razão quando diz que a moribunda era mais uma “vítima do mundo dos comerciantes”.

Ocorre que a narrativa está longe de se manter dentro da alegoria realista. O que acontece em seguida é que Jorge se propõe como novo marido e pai da mulher. O que diz é quase inacreditável fora de um sketch cômico: “Sou eu o pai do teu filho. E voltei para ficar com você, eu voltei para ficar com você e… ei! Ei! Minha senhora!…”. A interjeição formal de alguém que se propunha a ser seu marido parece tão abstrusa que só nos resta rir da sequência forçada. E o mais incrível dela, que devendo ser triste acaba em gargalhadas, é que Jorge atribui o fracasso da cura da mulher ao exagero de sua invenção (“Ela ficou tão alegre com as minhas palavras, tão alegre que morreu.”). Ou seja, na sua perspectiva gauche, mais mata o exagero da fantasia do que a desgraça real.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho