Um vigarista chamado Jorge (3)

No romance “Vigarista Jorge”, estamos na vertigem de um fluxo narrativo que se alimenta de irrupções súbitas e simbologias de época
O músico e escritor Jorge Mautner, autor de “Vigarista Jorge”
01/03/2024

Em continuação ao que vínhamos dizendo sobre Vigarista Jorge, de Jorge Mautner, a narrativa começa in medias res com o narrador-protagonista andando por uma estrada qualquer, num dia cinzento, frio e chuvoso. Não existem cores à vista, a não ser algumas nuances frias de azul e verde. O mar está de um lado da estrada e, do outro, se encontra a cidade, parecendo, portanto, que a estrada ocupa um lugar de separação ou de fronteira, numa possível nova remissão à mudança de Mautner do Rio para São Paulo.

Ficamos então sabendo que o protagonista está à procura de um “feiticeiro” famoso, não se sabe exatamente para quê, mas a busca dá à sua caminhada um caráter de quest ou missão. O termo “feiticeiro”, numa primeira leitura, parece reforçar o aspecto de jornada mística ou interior suposto usualmente na quest. Se acrescentarmos a isso o que já dissemos nas colunas anteriores, o feiticeiro potencialmente traz consigo algo da influência misteriosa e benigna que trazia a antiga “babalorixá” negra da infância paradisíaca perdida. Além disso, o emprego do termo feiticeiro parece referir algum tipo de autoridade xamânica, de inspiração indígena ou talvez africana.

Trata-se, em qualquer caso, de um tipo de esoterismo vago, com ares alternativos, que se ajusta facilmente ao ambiente da contracultura dos anos 60. Quer dizer, o relato parece bastante datado, mas não deixa de ser surpreendente também o seu caráter up-to-date: estamos em 1964-1965, e essas são referências que apenas se tornarão mais populares no Brasil mais ao fim da década, especialmente a partir do sucesso estrondoso das narrativas de Carlos Castañeda, cujo A erva do diabo é de 1968.

É então que, não mais que de repente, surge outra personagem no meio da estrada: uma menina “gentil” que chama a atenção do protagonista a ponto de ele resolver, de pronto, adotá-la como “filha”. Porque esse súbito impulso paternal, não se sabe, assim como não se sabe o que fazia uma criança sozinha, ali, naquela estrada perdida entre a praia e a cidade. Enfim, está claro que não há qualquer verossimilhança pertinente ao caso: estamos simplesmente na vertigem de um fluxo narrativo que se alimenta de irrupções súbitas e simbologias de época, ambas associadas a emanações do protagonista infantilizado. Não quero dizer com isso que o relato não faça sentido, mas sim que não pode ser compreendido pela verossimilhança das ações, obrigando necessariamente à interpretação simbólica de um processo vivido em boa parte de maneira inconsciente. Aliás, me ocorre agora dizer que, desse ponto de vista, estamos num registro em que o fluxo inconsciente está no coração da matéria: o narrador tosco de Mautner narra sobretudo a ruptura sofrida na infância, a qual retorna indefinidamente, travando a possibilidade de que a sua maturidade possa ser vivida com coragem e alegria, à maneira nietzscheana que ele parece admirar.

A menina, por sua vez, aceita prontamente a adoção pelo protagonista uma vez que alegadamente também “precisa” de um pai, numa curiosa inversão da ideia libertária e contracultural de liquidar a autoridade dos pais. No entanto, a impressão final que a criança deixa é que ela está tão solta no espaço da narrativa, é tão aleatória em relação aos eventos, que ela pode se dobrar indefinidamente aos desejos e carências do narrador-personagem. Assim como surgiu do nada, pode ser adotada do nada, e pode posteriormente desaparecer no nada, que é o que efetivamente vai ocorrer mais tarde: tudo está nas disposições afetivas do narrador. Por ora, entretanto, ambos, homem e menina, na adoção mútua, espontânea, mas também providencial, como que ajuntam as duas carências, vicariamente preenchidas.

Após a adoção da menina, passando a andar em sua companhia, o narrador surpreendentemente não sublinha a harmonia do encontro, mas sim o ódio que sente pelo “burguês”, e, em particular, pela sociedade do consumo, que o faz pensar mesmo em suicídio. Quer dizer, o encontro paternal com a garota não pacifica o seu espírito, mas, ao contrário, acentua um viés inconformado e incompatível com a vida em família, conservadora e consumista. Convém notar, entretanto, que essa nota suicida, potencialmente dramática, não o é, de fato: ela não chega a subir nem a descer o tom narrativo, e, por isso mesmo, não chega a convencer de sua possibilidade real. Ela surge mais como arremedo de protesto político; como desenvolvimento de uma lógica antiburguesa, sem implicar verdadeiramente um drama pessoal com densidade emocional. O suicídio é, a rigor, apenas hipótese surgida episodicamente dentro da sua ação mais obstinada, qual seja, a de buscar o tal feiticeiro misterioso, que teria a resposta para as suas angústias. Nessas circunstâncias, o encontro com a menina surge na estrada sobretudo como sinal de que está no rumo correto.

E eis que novamente, sempre de forma repentina, surge na estrada uma nova personagem: desta vez, um velho que dirige um “calhambeque”. O termo para se referir ao carro é interessante. Em princípio, literalmente, referiria apenas um carro velho e em más condições, o que serviria ao relato para evidenciar um lugar de pobreza, exterior à sociedade de consumo que o narrador invectiva. Acontece que, mais uma vez, Mautner mostra estar muito antenado com os tempos, conquanto pareça completamente fora de órbita. Assim, ele refere o “calhambeque” ainda antes que Roberto Carlos o faça e introduza na mitologia popular da Jovem Guarda, o programa de TV que divulgou o rock no Brasil. Num caso ou noutro, o “calhambeque” parece referir o mesmo estilo barato, desprezado pela elite cultural ou econômica, mas com grande penetração entre os jovens. Não estou dizendo, entretanto, que Mautner antecipou nada, mas apenas que demonstra estar atento aos movimentos do mercado cultural: não para acatá-lo apenas, o que nunca realmente chega a fazer, mas sim para parafraseá-lo de maneira irônica, sem deixar de manifestar também o seu contrário naïf. Eis aí o oximoro mautneriano por excelência: a junção paradoxal de ironia e ingenuidade.

O velho então se apresenta como sendo “Xorin” — uma corruptela de chorinho talvez? Um velho ritmo, uma tradição à espera de quem a rejuvenesça? Pois Xorin é justamente o feiticeiro que o protagonista buscava. O objeto da sua quest, por assim dizer, cai-lhe no colo, sem maiores provas de valor, a não ser a de adotar uma criança.

O narrador então logo se candidata ao posto de auxiliar do feiticeiro. O currículo que oferece para obter o cargo é a sua fragilidade: é um “poeta”, e, por definição, alguém “fraco”, avesso à violência do mundo que se desenha diante deles. O velho então lhe responde que “feitiçaria não existe”, e que só fingia praticá-la como forma de ajudar as pessoas. Revela-se aí, portanto, a boa vigarice, a trapaça do bem, por assim dizer: não sendo um autêntico curandeiro, encena a função, motivado pelo propósito benigno de que as pessoas acreditassem nesse poder fantasioso e então se curassem a si mesmas.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho