Um vigarista chamado Jorge (1)

Tudo na escrita de Jorge Mautner tem um curioso acento quantitativo, que permeia o efeito divertido e absurdo de sua obra literária
O músico e escritor Jorge Mautner, autor de “Vigarista Jorge”
01/01/2024

Jorge Mautner é conhecido sobretudo como músico. Ao menos uma canção dele, Maracatu atômico, é muito conhecida, com diversas regravações, como a de Chico Science & Nação Zumbi, que a adaptou maravilhosamente ao baticum fuzzy do mangue beat. Se Maracatu atômico não chega a ser one-hit wonder, é certo que fez mais sucesso do que todas as outras músicas que Mautner compôs. Também O vampiro, na voz de Caetano Veloso, não na de Mautner, teve boa repercussão pública, a seu tempo. Mautner, porém, compôs inúmeras outras canções ótimas e gravou vários belos álbuns autorais que estão longe de ser apreciados como mereciam. E se a sua atividade como músico é a sua faceta mais conhecida, o que dizer de sua atividade como escritor? Pois a escrita de Mautner coexistiu sempre com a sua música. Criador prolífico, Mautner, ainda muito jovem, já anunciava ter a ambição de escrever um milhão de páginas. E, de fato, tudo na escrita dele tem um curioso acento quantitativo, que permeia o efeito divertido e absurdo — por vezes até absurdamente divertido — que sempre parece haver no que faz.

Li quase todos os livros de Mautner porque sempre o achei uma figura algo indecifrável, e gostava de sua música. Li-o, em diversos momentos do humor e da idade, e, de fato, confesso que nunca gostei de nenhum de seus livros. Como escritor, sempre me pareceu quase canhestro. Mas, por outro lado, eis o paradoxo, nunca deixei de gostar de o ler. Mantive a curiosidade pelo que escrevia: havia um lado amalucado em suas histórias e teorias que sempre guardavam alguma graça esquisita, voluntária ou involuntária, nunca consegui realmente saber.

As suas teorias sobre o Brasil, que juntam o inajuntável, como o marxismo e o esoterismo, sob o amálgama batido das mitologias do Brasil mestiço e do país do futuro, me parecem insustentáveis, conceitualmente e historicamente, mas, ainda assim, quando ele as enuncia, têm graça, tanto no sentido de serem engraçadas, como no de comporem uma insensatez, digamos, sistemática. Mautner é realmente muito metódico na sua loucura, o que costuma ser sempre interessante como objeto de estudo. Por isso, creio, nunca consegui deixar a literatura dele de lado, como já fiz tantas vezes, sem remorso, com a de tantos outros autores melhores do que ele.

E cá estou eu de novo a falar de Mautner. Desta vez, para fazer alguns comentários sobre Vigarista Jorge, um texto seu publicado em 1965 e escrito ao longo do ano anterior, o fatídico ano de 1964, quando o Brasil teve um pico autoritário que até hoje tem ressonâncias graves, como as que recentemente nos fizeram chafurdar no reino do Bozo. Um dos motivos de eu escolher falar de Vigarista Jorge é precisamente este: a sua datação, visto ser uma obra escrita em pleno tumulto do golpe militar. Aliás, imagino que seria um projeto interessante mapear as obras literárias escritas nesse ano em que o país teve subtraída de si a possibilidade de autogoverno. Talvez isso ajudasse a saber ao menos como essa catástrofe histórica e política foi assimilada pela literatura, a qual, por sua vez, como era de esperar, não teve poder algum para contê-la. Nem antes, nem agora. A miséria bolsonarista, no fundo, ainda foi um efeito do golpe militar de 1964, não obstante a entrada relevante de outros fatores na equação do desastre, como o das milícias e o do neopentecostalismo.

Naquele ano de 1964, ainda estávamos aprendendo o que fosse democracia, e, depois dele, a desentendemos de vez. Mesmo quando ela existe, como agora — graças a um personagem único na história do Brasil, e sem substituto à vista, como Lula —, a democracia brasileira parece sempre muito frágil, sofrendo ataques contínuos de agentes e órgãos que supostamente deveriam protegê-la, como justiça, congresso e até imprensa. No fundo — digo isso com muita tristeza —, a maioria do país, como do mundo, se tornou mais defensor do mercado do que de qualquer outra coisa. E, para não sentar no próprio rabo, convém reconhecer que também os professores universitários ganharam um lastimável ar de microempresários. Até alunos de graduação já se pensam como microempreendedores. Eu me tornei professor justamente para não ter de lidar com nada que tivesse a ver com negócio, e agora reencontro o comércio dentro da própria universidade: o academic business é uma praga impossível de deter.

Tornando, porém, a Vigarista Jorge: na época, a obra foi enquadrada na chamada Lei de Segurança Nacional, e a sua circulação foi proibida. Mautner chegou a ser preso, aparentemente por ter ligações com o Partido Comunista, mas foi solto logo depois. Ele mesmo conta que teve algum tipo de “proteção” no exército; em outra ocasião, brincou que, a seu tempo, era considerado comunista e nazista ao mesmo tempo.

Certo mesmo é que há um encanto único em Mautner, que pode ser percebido em muitos lugares. Por exemplo, num documentário recente a que assisti, uma filha dele, em certo momento, lhe pergunta se ele não se dava conta de que não era normal ter um pai que andava pelado em casa e que ia de cueca levar a filha na escola. Ela ainda declara que fez anos de terapia por conta disso, o que não chega a alterar a expressão de Mautner, que diz algo a respeito de estar tudo certo. Está bem claro, portanto, que Mautner não é, nem nunca foi, uma figura convencional. Até admira que tenha conseguido se manter bem e trabalhando regularmente até hoje, usualmente fora do mainstream comercial.

Pois bem, vou esboçar aqui uma apresentação de Vigarista Jorge adotando talvez o método mais complicado, e talvez mesmo o menos adequado para abordar o livro, qual seja o de puxar os fios de enredo que existem no meio do verdadeiro cipoal de eventos existentes nele. Mas pretendo fazer isso apenas na primeira parte dele, que é mais do que suficiente como amostra do tipo de narrativa produzida por Mautner. Esse método é complicado, eu disse, porque o enredo do livro está longe de ser claro. Além da novela não ser realista, o seu gênero de fato ainda precisa ser determinado — ou, talvez, seria mais correto falar de gêneros, no plural, pois está evidente que o conjunto admite variações importantes que vão do diário ao epistolário; da autobiografia ao ensaio, e dele ao que atualmente se chamaria de “autoficção”.

Aliás, a primeira observação estrutural a fazer sobre Vigarista Jorge é que não se trata de um texto contínuo, mas um composto de sete conjuntos de textos que se alternam em primeira e terceira pessoas, por vezes, dentro do mesmo texto. Em comum, os sete conjuntos contêm um protagonista chamado Jorge, com vários elementos autobiográficos de Mautner. Não sei se isso compõe os primórdios do gênero da autoficção, no Brasil, mas é provável que sim, embora o rótulo se aplique com alguma dificuldade, dada a mistura de gêneros. O primeiro texto dos sete é justamente Vigarista Jorge, que dá título ao volume todo. Na próxima coluna, tentarei uma abordagem dele em close reading.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

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