Quando Celso Queirós e eu pensamos em editar B. Traven na Coleção Quimera, ainda não tínhamos ideia da saga que enfrentaríamos, a começar pela dificuldade de localização dos herdeiros, que afinal encontramos após um ano de buscas. Agora, porém, já nada importa diante da alegria de editar o livro que fecha a trinca maravilhosa dos três primeiros romances de B. Traven. Depois de O navio da morte e de Os catadores de algodão, ambos protagonizados e narrados em primeira pessoa pela personagem de Gerard Gales, saiu agora O tesouro de Sierra Madre, o primeiro em terceira pessoa e sem a participação de Gales. Mais importante ainda, a edição da Coleção Quimera traz ao público uma tradução para o português do Brasil feita do original alemão, e não da versão adaptada para o público norte-americano, como foi feito até agora.
Explico melhor o caso, que, de resto, vale para outras obras de B. Traven.
A primeira edição do romance, com o título Der Schatz der Sierra Madre, saiu em Berlim, pela Büchergilde Gutenberg, em 1927. A sua primeira edição em inglês (The treasure of the Sierra Madre) surgiu em Londres (Chatto & Windus), em 1934. A primeira edição norte-americana, com título idêntico ao londrino, saiu apenas no ano seguinte pela Alfred A. Knopf, de Nova York — portanto, oito anos após o lançamento da edição original alemã.
O que há de extraordinário na versão norte-americana, entretanto, é que ela sofreu várias alterações nas mãos de Bernard Smith, funcionário designado por Knopf para cuidar do lançamento dos primeiros livros de B. Traven nos Estados Unidos. Isso porque, embora tenha intuído nas obras de B. Traven possibilidades de penetração no nascente público operário norte-americano, Knopf achava que os livros necessitavam ainda de alguma adaptação para chegarem lá. Além disso, havia o fato de que a tradução para o inglês, feita pelo próprio B. Traven, era bastante imperfeita para ser publicada dessa forma.
O certo é que B. Traven acabou acatando as intervenções de Smith, talvez acreditando na hipótese de Knopf de que, com elas, o romance se ajustaria melhor ao operariado norte-americano. Para alguém que fora ligado ao movimento anarquista alemão e vivera o ambiente revolucionário de Munique, que culminou na brevíssima fundação da República Soviética da Baviera, em 1919, atingir o público de trabalhadores era um argumento relevante.
O mais surpreendente foi que as versões norte-americanas de seus livros passaram a ser tomadas, em muitos países, como sendo os verdadeiros originais de B. Traven. Até o seu nome (de fato, um pseudônimo) começou a ser pronunciado à maneira americana — algo como bitreiven. O mesmo ocorreu com a edição brasileira da Civilização Brasileira, de 1964, na qual consta que o livro fora traduzido “do original em inglês”, o que, portanto, a torna muito diferente da edição que publicamos na Coleção Quimera, traduzida diretamente do alemão por Érica Castro.
Afora essa elucidação editorial importante, gostaria também de fazer aqui uma anotação crítica. Ao longo do tempo, O tesouro de Sierra Madre tem sido considerado o melhor romance de B. Traven. Sem discordar de que se trata de uma obra-prima, parece-me, contudo, que o destaque concedido a esse livro, entre todos os demais assinados por B. Traven, não se deve à leitura e comparação cuidadosa entre eles, mas sim, mais uma vez, a uma interferência norte-americana.
O que aconteceu foi que O tesouro de Sierra Madre teve uma bem-sucedida transposição para o cinema de Hollywood, na qual o próprio B. Traven, desta vez escondido sob o pseudônimo de Hal Croves, atuou como assessor da adaptação cinematográfica. Resultou daí o filme homônimo lançado em 1948, dirigido por John Huston e estrelado por Humphrey Bogart, Tim Holt e Walter Huston. O filme acabou vencedor de três estatuetas do Oscar de 1949: duas para o próprio John Huston (Melhor Diretor e Melhor Roteiro Adaptado) e outra para seu pai, Walter, que levou o de Melhor Ator Coadjuvante.
Para apresentar de fato o romance, precisaria de várias colunas, mas vou simplificar ao máximo, chamando a atenção para a sua epígrafe, cujo tom solene, vazado em letras capitais, mais parece lembrar um epitáfio — vale dizer, uma experiência ditada à sombra da morte. É o seguinte, já na tradução de Érica Castro:
O tesouro que você julga não valer sequer uma viagem para buscar, esse é o tesouro verdadeiro – e uma vida inteira não basta para encontrá-lo. Já o tesouro reluzente que você persegue está do outro lado.
Como é fácil ver, o enunciado da epígrafe opõe o “verdadeiro tesouro” (der echte Schatz) ao “tesouro reluzente” (der funkelnde Schatz), os quais estariam em lados opostos. Portanto, deixar-se seduzir pelas coisas que brilham — como, por antonomásia, o ouro — equivaleria a perder o valor real da vida, ou, talvez melhor, o valor da vida real, o que só se perceberia tarde demais, quando a própria vida estivesse perdida. Não é uma sentença original; antes, retoma uma tópica antiga, a do “desengano” dos bens da fortuna. Mas a sutileza de B. Traven é a de fazê-la parecer menos uma advertência, que se pode aplicar prudentemente à própria vida, do que uma constatação a posteriori, que ecoa a consternação de um fracasso, com amargura quase fúnebre.
E isso é ainda mais relevante porque Traven insiste nessa formulação, não apenas em O tesouro de Sierra Madre. A personagem de Gerard Gales enuncia algo semelhante em um conto publicado em 1928, na coletânea Der Busch (A mata), intitulado Der Nachtbesuch im Busch (O visitante noturno da mata). Nele, após Gales se conscientizar de que não era bem-vindo nas matas ancestrais do México em que se aventurara, e de que apenas a loucura o aguardava ali, ele corre apavorado à estação, subindo no primeiro trem que partia sem sequer perguntar pelo seu destino. Justifica o descuido afirmando para si mesmo que um lugar estava tão perto quanto qualquer outro daquele que “está decidido” que será o dele. Ou seja, Gales parece considerar a escolha da sua próxima parada como um debate inútil contra um destino irresistível. E ele então escreve o seguinte:
Se for para descobrir uma mina de ouro, é melhor demolir a própria casa e cavar o solo embaixo dela. Esse lugar está tão próximo da felicidade e riqueza quanto outros, a dez mil quilômetros de distância, para onde se foi em busca do que se desejava.
A frase alude, portanto, a um mundo determinado por forças desconhecidas, no qual o esforço para mudar o próprio destino tende a ser inútil: fugir dele é o mesmo que correr na sua direção — como ocorre nas grandes tragédias antigas. A consciência apenas surge quando já é inútil para suspender a catástrofe. Aliás, o termo “consciência”, aqui, mais parece escarmento, ou até escárnio, do que iluminação e escolha racional. Em O tesouro de Sierra Madre, ao contrário da euforia aventureira que costuma haver nos livros de “caça ao tesouro”, a própria ideia reluzente de “tesouro” é apenas um chamariz da escuridão do homem.