O manuscrito de Urbania (2)

Duas coletâneas de epigramas produzidas por alunos de colégios jesuítas no Brasil colônia
Ilustração: Conde Baltazar
01/07/2022

Como contei na coluna anterior, o manuscrito descoberto em Urbania, cidade italiana da região das Marcas, é um importante documento sobre o ensino jesuítico na Bahia colonial. Contém duas partes bem distintas: a primeira, que já apresentei na coluna de junho, é composta de duas orações do padre-mestre para recepção aos alunos que voltavam ao colégio para um novo período letivo; a segunda, de que trato agora, reúne quase uma centena e meia de exercícios poéticos produzidos pelos estudantes.

Mais precisamente, os exercícios estão divididos em dois grupos, atribuídos, pela ordem, a João da Silva Leão e João Gonçalves das Chaves. São ambos identificados como alunos dos jesuítas, embora os nomes não constem das relações de padres ou noviços expulsos da Província do Brasil ou recebidos na Itália. Todos os poemas são dedicados ao padre Simão Marques (1684-1766), padre e mestre das disciplinas de Retórica e Letras.

Os exercícios exploram diferentes aspectos da composição epigramática. Como é sabido, os epigramas surgiram, ainda no período antigo, como inscrição lapidar, a rememorar grandes feitos, vidas exemplares e ofertas votivas. Previa um verso ou, no máximo, dois, o que, contudo, foi-se alterando ao longo do tempo. Na época alexandrina, por exemplo, o epigrama já era uma designação genérica para composições curtas, de ritmo marcado e alto grau de acabamento.

No período do documento, meados do século 18, os epigramas eram compostos sob rubricas especializadas, como epigramas morais, heroicos, patrióticos e satíricos —, estes, largamente predominantes na definição do gênero. Enquanto composição satírica, os epigramas prestavam-se especialmente à polêmica social e política, assim como à rivalidade literária. Outra característica era o emprego de metros menos nobres, e que, portanto, vinham a calhar para poetas iniciantes ou exercícios escolares.

O primeiro florilégio
Atribuído a João da Silva Leão, aluno do Seminário de Belém, em Cachoeira do Campo, o conjunto inicial perfaz um total de 31 poemas, sendo que o primeiro funciona como proêmio dos 30 seguintes. Cada um dos poemas, por sua vez, é dado como análogo de uma flor diferente, de modo que o conjunto forma um ramalhete de 30 flores. Trata-se de um processo de composição bem típico do que era proposto pelas preceptivas seiscentistas “engenhosas”, que vinham sendo dominantes desde o final do século 16. O aspecto “engenhoso” ou “agudo” é buscado aí tanto pela assimilação alegórica dos poemas às variedades das flores, como pela referência implícita a duas congregações locais: a Congregação do Menino Jesus e a Congregação das Flores, dedicadas às Letras e à devoção da Virgem.

Esse “ramalhete poético” é todo ele produzido como louvor ao professor de Retórica do Colégio, o padre Marques. Por exemplo, no primeiro poema, dedicado à rosa vermelha, a flor é moralizada com uma qualidade virtuosa —no caso, a “dignidade” —, que, em seguida, se transfere para o padre Marques e para o corpo místico da Companhia. A mesma transferência é feita sucessivamente com as 30 flores, até completar-se o ramalhete, e evidenciar-se que a finalidade dos exercícios não se encerra na habilidade retórico-poética, mas, nos termos do ensino missionário religioso, quer produzir a reforma da vida.

O segundo florilégio
A segunda coletânea, também ofertada ao padre Marques, atribui-se a João Gonçalves das Chaves, aluno do Colégio de Cachoeira. Forma um grande conjunto de 110 epigramas, subdividido em nove “assuntos” diferentes. Não creio que todos os poemas sejam de João Gonçalves, pois há diferenças flagrantes de qualidade entre eles. E reforça essa suspeita o fato de que apenas o “primeiro assunto” guarda alguma simetria com o primeiro florilégio, pois contém uma coleção de 31 epigramas, com o primeiro servindo de proêmio aos outros. Nos demais, essa simetria se perde ou não existe.

Outro aspecto notável deste segundo florilégio é o seu ethos satírico, evidente já no introito em que a figura da captatio benevolentiae é aplicada de maneira bem irreverente. Ao invocar a sua musa, o poeta diz que ela fora “enforcada” em punição pública por seus crimes, que tanto podem ser os da calúnia como os da má poesia que inspirava. No mesmo tom de galhofa, pede ao padre Simão que aceite os 30 “epigraminhas” que vão a seguir e que pretendem compor uma “chave” de ouro a fim de que o mestre a carregue, assim como São Pedro portava as chaves do céu. Percebe-se aí uma dupla “equivocação” engenhosa, pois, primeiro, as chaves relacionam-se com o próprio nome do aluno, João das Chaves; depois, como é sabido, antes de se tornar Pedro, o santo se chamava Simão, o que traz à cena também o padre Simão Marques.

Os duplos sentidos e analogias sobrepostas deixam claro que prevalece nos epigramas a matriz engenhosa, na qual a composição busca correspondências entre termos usualmente distantes. E aqui cabe um esclarecimento importante para quem queira entender os epigramas de corte engenhoso: a adoção da voz satírica não implica em desprezo ou desrespeito em relação ao mestre ou à Companhia de Jesus. Essa poderia ser a impressão de um leitor moderno, que desconhece o decoro do fingimento ajustado a cada gênero poético, mas, de fato, seria uma falsa pista. Naquele período histórico, não havia a ideia romântica da poesia como expressão de uma suposta unidade psicológica do autor, ou daquilo que se passava no seu “interior”. Tratava-se, isto sim, de emular o caráter próprio a cada gênero poético, cujos modelos eram fornecidos por autores antigos, tomados como autoridades. Significa dizer que, no caso de um epigrama satírico, a fim de que o aluno atenda corretamente à tarefa de aprendizado, a Musa deve mesmo ser ridícula, insolente ou obscena. O que os alunos praticam são exercícios de ajustes da composição ao caráter próprio do epigrama, não uma forma de manifestação “sincera” ou “pessoal”.

Conclui-se que o Manuscrito de Urbania se constitui como exemplo típico da progymnasmata jesuítica, vale dizer, das práticas escolares dos Seminários da Companhia de Jesus, os quais articulam estudos humanísticos, pastoral missionária e mesmo algum rudimento de teologia mística. Outra maneira de descrever o documento é dizer que os exercícios poéticos dos alunos funcionam como ilustrações das orações proferidas pelo padre-mestre, de que falei na coluna anterior: a primeira, sobre a tópica das Letras e Armas; a segunda, que faz encômio de um campeão missionário. Em conjunto, representam perfeitamente a indissociabilidade das dimensões letrada e religiosa no âmbito da educação jesuítica.

Se acaso, contra as evidências do tempo e da fortuna, houver interesse em saber mais sobre o assunto, sugiro consultar o volume Apologia das letras humanas (Edusp, 2022), que editei com Marina Massimi, pesquisadora responsável por tornar o manuscrito de Urbania disponível a pesquisadores do Brasil.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

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