O manuscrito de Urbania (1)

Um documento escrito em latim desvenda um pouco da rotina dos colégios do Brasil do século 18
Ilustração: Beatriz Cajé
01/06/2022

Devo à colega e amiga Marina Massimi a primeira notícia do manuscrito nº 58 da Biblioteca Municipal de Urbania, comuna italiana antes denominada Castel Durante, localizada na província de Pesaro e Urbano, na região Marchi. Desde que Marina me falou do documento, há uns cinco ou seis anos, fiquei impressionado com a relevância do achado: um belo manuscrito ornamentado do século 18, escrito em latim, íntegro, contendo discursos e atividades escolares praticadas em dois colégios jesuítas, o de Salvador da Bahia e o de Belém, em Cachoeira, no interior do Recôncavo baiano.

Afora o grande valor histórico e estético do manuscrito, vale mencionar que a sua descoberta em Urbania está longe de ser óbvia: os pesquisadores poderiam procurá-lo no ARSI, o célebre arquivo da Companhia de Jesus, no Borgo Santo Spirito, em Roma, ou, enfim, nos arquivos do Vaticano, mas dificilmente o teriam buscado numa biblioteca do interior da Itália, importante para os estudos renascentistas, mas onde não se esperaria encontrar vestígios das missões jesuíticas no Brasil do século 18. Por que o documento teria ido parar ali é matéria de conjecturas que não caberiam aqui, mas é certo que foi contrabandeado para a Itália pelos próprios padres, após o decreto pombalino de expulsão dos jesuítas, em 1759.

Para uma apresentação simples do manuscrito de Urbania, diria que ele é composto basicamente de dois grupos de documentos: o primeiro grupo inclui dois discursos feitos possivelmente por um mesmo padre-mestre; o segundo contém também duas coleções, mas agora de exercícios de composição poética praticados pelos alunos, totalizando quase 150 peças.

Os discursos dos padres-mestres
O primeiro texto do manuscrito intitula-se Discurso parenético sobre o louvor das letras humanas, e está dedicado ao décimo Conde de Atouguia, Luís Pedro Peregrino Menezes Carvalho e Ataíde (1700-1758), vice-rei do Brasil no período entre 1749 e 1755. Não há autoria expressa no documento, mas é possível formular a hipótese de que tenha sido composto pelo padre-mestre Simão Marques (1684-1766), ao qual se dedicam os dois conjuntos poéticos copiados no manuscrito.

O padre Simão Marques está bem identificado na história do Brasil colonial: sabe-se que era natural de Coimbra e que chegou ao Brasil em 1702. Ministrou aulas de Belas Letras, Filosofia e Teologia em vários colégios da Companhia, tendo chegado a reitor do Colégio do Rio de Janeiro. Após o decreto de 1759, é deportado para Roma, onde mais tarde vem a falecer — o que dá a entender que não foi ele que levou o manuscrito para Urbania, mas um companheiro transferido para esta cidade.

Em termos gerais, o Discurso parenético é um texto de recepção aos alunos que voltavam ao Colégio ao fim das férias escolares para um novo ciclo de estudos de Letras e Filosofia. A argumentação do Discurso está toda composta em torno da tópica das “Letras e Armas”, bem característica do início do “período moderno”, quando o ideal de nobreza, tanto de sangue como de governança política, deixa de estar associado apenas aos feitos de guerra para se vincular à formação intelectual e aos cálculos mentais de condução dos Estados em tempos de paz.

O documento repassa didaticamente os principais argumentos da tópica, e o faz à imitação de um comandante militar que exorta na tropa as paixões belicosas adequadas à guerra. Aqui, entretanto, trata-se de exortar os alunos ao domínio das Letras, sob o patrocínio da deusa Atenas — que figuradamente se apresenta vestida de toga e desarmada —, com a finalidade de animá-los ao estudo e ao reconhecimento do valor da razão e da sabedoria.

Em termos curriculares, destacam-se no documento os estudos de língua latina; os exercícios de oratória; as práticas de comentários, glosas e interpretação de autores antigos; os estudos de composição metódica e, ainda, os rudimentos da arte de narrar. O conjunto dessas disciplinas sintetiza-se precisamente no ensino da Retórica, a qual, embora compreendida como conhecimento ameno, não se supõe inadequada ao estudo dos assuntos teológicos, nem à disciplina das virtudes. Antes, ela representa um poderoso auxílio a todas as matérias, incluindo as que dizem respeito às Armas.

Ao fim do Discurso, o autor da oração propõe que a Retórica não apenas ombreia com as Armas, como é capaz de superá-las, pois, não sendo patrimônio exclusivo de nobres, é capaz de criar nobreza a partir de sua peculiar aptidão para conduzir, deliberar, louvar, censurar, proteger, combater ludíbrios etc. A esses dons se associa ainda o de compor a memória das vidas dos grandes homens e das suas vitórias, as quais, sem os retores, poetas e historiadores perder-se-iam na própria sucessão anônima dos combates.

A segunda oração do manuscrito de Urbania intitula-se O solstício de Xavier e, tal como ocorre no Discurso parenético, não há consignação de autoria, permanecendo válida a hipótese anterior de atribuí-la ao padre Simão Marques. Em termos gerais, constitui-se como um típico exemplo de discurso epidítico, vale dizer, de constituição técnica de louvor, aqui aplicado a S. Francisco Xavier (1506-1552). Herói maior das missões da Companhia de Jesus, sabe-se que S. Francisco Xavier ganhara o epíteto de “Sol do Oriente”, tal como referido pelo jesuíta padre Antonio da Silva, em livro de 1665.

Segundo o discurso, Xavier, como símile do Sol que coordena as doze constelações do Zodíaco — de Câncer a Capricórnio, e vice-versa, contornando o que se designava então como Trópico Austral —, percorre celeremente todas as missões cristãs no mundo, produzindo milagres da fé em favor de cada uma delas. O aspecto mais engenhoso previsto na figura do Solstício não é apenas o da analogia entre Xavier e o Sol, ambos tomados como centro do universo, mas sim o acréscimo a ela de uma espécie de oximoro: Febo, o Sol, está tão imóvel no centro do mundo, quanto se move em giros por todo ele, a iluminar o firmamento.

A própria sustentação do paradoxo é já tomada como sinal do mistério divino presente ali, pois é justamente a ubiquidade, de natureza providencial, que Xavier imita, perfazendo a trajetória de um eixo simultaneamente fixo e em movimento. Assim, ainda que imóvel nas bandeiras ou pinturas que o recordam em cada missão, Xavier logra mover-se por todo o mundo, espantando as trevas que assombram a gentilidade. Portanto, no âmbito do concetto aqui empregado, imobilidade e movimento compõem uma ação única, como uma roda que, girando em alta velocidade, parece imóvel aos que a observam de longe.

Encerrada essa primeira parte do manuscrito de Urbania, segue-se uma série de exercícios poéticos dos estudantes que, à diferença dos textos dos mestres, trazem identificação de autoria bem determinada, como a dos alunos João da Silva Leão e João Gonçalves das Chaves — embora, pela grande variação estilística entre os poemas, não me parece que sejam deles todos os poemas relacionados.

Na próxima coluna darei notícia, com mais vagar, desses poemas estudantis.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho