Devo à colega e amiga Marina Massimi a primeira notícia do manuscrito nº 58 da Biblioteca Municipal de Urbania, comuna italiana antes denominada Castel Durante, localizada na província de Pesaro e Urbano, na região Marchi. Desde que Marina me falou do documento, há uns cinco ou seis anos, fiquei impressionado com a relevância do achado: um belo manuscrito ornamentado do século 18, escrito em latim, íntegro, contendo discursos e atividades escolares praticadas em dois colégios jesuítas, o de Salvador da Bahia e o de Belém, em Cachoeira, no interior do Recôncavo baiano.
Afora o grande valor histórico e estético do manuscrito, vale mencionar que a sua descoberta em Urbania está longe de ser óbvia: os pesquisadores poderiam procurá-lo no ARSI, o célebre arquivo da Companhia de Jesus, no Borgo Santo Spirito, em Roma, ou, enfim, nos arquivos do Vaticano, mas dificilmente o teriam buscado numa biblioteca do interior da Itália, importante para os estudos renascentistas, mas onde não se esperaria encontrar vestígios das missões jesuíticas no Brasil do século 18. Por que o documento teria ido parar ali é matéria de conjecturas que não caberiam aqui, mas é certo que foi contrabandeado para a Itália pelos próprios padres, após o decreto pombalino de expulsão dos jesuítas, em 1759.
Para uma apresentação simples do manuscrito de Urbania, diria que ele é composto basicamente de dois grupos de documentos: o primeiro grupo inclui dois discursos feitos possivelmente por um mesmo padre-mestre; o segundo contém também duas coleções, mas agora de exercícios de composição poética praticados pelos alunos, totalizando quase 150 peças.
Os discursos dos padres-mestres
O primeiro texto do manuscrito intitula-se Discurso parenético sobre o louvor das letras humanas, e está dedicado ao décimo Conde de Atouguia, Luís Pedro Peregrino Menezes Carvalho e Ataíde (1700-1758), vice-rei do Brasil no período entre 1749 e 1755. Não há autoria expressa no documento, mas é possível formular a hipótese de que tenha sido composto pelo padre-mestre Simão Marques (1684-1766), ao qual se dedicam os dois conjuntos poéticos copiados no manuscrito.
O padre Simão Marques está bem identificado na história do Brasil colonial: sabe-se que era natural de Coimbra e que chegou ao Brasil em 1702. Ministrou aulas de Belas Letras, Filosofia e Teologia em vários colégios da Companhia, tendo chegado a reitor do Colégio do Rio de Janeiro. Após o decreto de 1759, é deportado para Roma, onde mais tarde vem a falecer — o que dá a entender que não foi ele que levou o manuscrito para Urbania, mas um companheiro transferido para esta cidade.
Em termos gerais, o Discurso parenético é um texto de recepção aos alunos que voltavam ao Colégio ao fim das férias escolares para um novo ciclo de estudos de Letras e Filosofia. A argumentação do Discurso está toda composta em torno da tópica das “Letras e Armas”, bem característica do início do “período moderno”, quando o ideal de nobreza, tanto de sangue como de governança política, deixa de estar associado apenas aos feitos de guerra para se vincular à formação intelectual e aos cálculos mentais de condução dos Estados em tempos de paz.
O documento repassa didaticamente os principais argumentos da tópica, e o faz à imitação de um comandante militar que exorta na tropa as paixões belicosas adequadas à guerra. Aqui, entretanto, trata-se de exortar os alunos ao domínio das Letras, sob o patrocínio da deusa Atenas — que figuradamente se apresenta vestida de toga e desarmada —, com a finalidade de animá-los ao estudo e ao reconhecimento do valor da razão e da sabedoria.
Em termos curriculares, destacam-se no documento os estudos de língua latina; os exercícios de oratória; as práticas de comentários, glosas e interpretação de autores antigos; os estudos de composição metódica e, ainda, os rudimentos da arte de narrar. O conjunto dessas disciplinas sintetiza-se precisamente no ensino da Retórica, a qual, embora compreendida como conhecimento ameno, não se supõe inadequada ao estudo dos assuntos teológicos, nem à disciplina das virtudes. Antes, ela representa um poderoso auxílio a todas as matérias, incluindo as que dizem respeito às Armas.
Ao fim do Discurso, o autor da oração propõe que a Retórica não apenas ombreia com as Armas, como é capaz de superá-las, pois, não sendo patrimônio exclusivo de nobres, é capaz de criar nobreza a partir de sua peculiar aptidão para conduzir, deliberar, louvar, censurar, proteger, combater ludíbrios etc. A esses dons se associa ainda o de compor a memória das vidas dos grandes homens e das suas vitórias, as quais, sem os retores, poetas e historiadores perder-se-iam na própria sucessão anônima dos combates.
A segunda oração do manuscrito de Urbania intitula-se O solstício de Xavier e, tal como ocorre no Discurso parenético, não há consignação de autoria, permanecendo válida a hipótese anterior de atribuí-la ao padre Simão Marques. Em termos gerais, constitui-se como um típico exemplo de discurso epidítico, vale dizer, de constituição técnica de louvor, aqui aplicado a S. Francisco Xavier (1506-1552). Herói maior das missões da Companhia de Jesus, sabe-se que S. Francisco Xavier ganhara o epíteto de “Sol do Oriente”, tal como referido pelo jesuíta padre Antonio da Silva, em livro de 1665.
Segundo o discurso, Xavier, como símile do Sol que coordena as doze constelações do Zodíaco — de Câncer a Capricórnio, e vice-versa, contornando o que se designava então como Trópico Austral —, percorre celeremente todas as missões cristãs no mundo, produzindo milagres da fé em favor de cada uma delas. O aspecto mais engenhoso previsto na figura do Solstício não é apenas o da analogia entre Xavier e o Sol, ambos tomados como centro do universo, mas sim o acréscimo a ela de uma espécie de oximoro: Febo, o Sol, está tão imóvel no centro do mundo, quanto se move em giros por todo ele, a iluminar o firmamento.
A própria sustentação do paradoxo é já tomada como sinal do mistério divino presente ali, pois é justamente a ubiquidade, de natureza providencial, que Xavier imita, perfazendo a trajetória de um eixo simultaneamente fixo e em movimento. Assim, ainda que imóvel nas bandeiras ou pinturas que o recordam em cada missão, Xavier logra mover-se por todo o mundo, espantando as trevas que assombram a gentilidade. Portanto, no âmbito do concetto aqui empregado, imobilidade e movimento compõem uma ação única, como uma roda que, girando em alta velocidade, parece imóvel aos que a observam de longe.
Encerrada essa primeira parte do manuscrito de Urbania, segue-se uma série de exercícios poéticos dos estudantes que, à diferença dos textos dos mestres, trazem identificação de autoria bem determinada, como a dos alunos João da Silva Leão e João Gonçalves das Chaves — embora, pela grande variação estilística entre os poemas, não me parece que sejam deles todos os poemas relacionados.
Na próxima coluna darei notícia, com mais vagar, desses poemas estudantis.