Há algum tempo, neste mesmo Rascunho, tentei argumentar no sentido de que a literatura era um ato irredutível ao conhecimento (edição 222, de outubro 2018), isto é, de que os textos literários não buscam ou ilustram conceitos — antes, tendem a resistir a qualquer metalinguagem e permanecer ao pé da página, apelando ao leitor para que a mantenha sempre junto de si, como um objeto desejado por si mesmo.
Hoje, retomo a questão assentando o meu ponto de vista no gosto do leitor habitual de literatura, isto é, aquele para quem a literatura sopra um apelo diário irresistível. Assim, numa frase, diria que as pessoas que leem literatura como uma prática quotidiana importante em suas vidas não estão prioritariamente interessadas em adquirir mais conhecimento sobre qualquer outra coisa. Não estão lendo necessariamente para compreender a si mesmo ou a sociedade, assim como não estão preocupados em conhecer a psique dos indivíduos, o “nacional popular” do Brasil, ou as sete maravilhas do mundo. O que querem é apenas continuar a ler e a ter prazer com a leitura.
Quando falo em prazer também não estou pensando num evento trepidante. O leitor habitual de literatura simplesmente deseja, a cada vez, com nuances próprias, a dose suficiente de prazer para fazê-lo retornar à cena de origem: a biblioteca, a livraria, ou onde esteja a fonte dos livros, para que possa escolher um outro livro para ler. Assim mesmo, sem progresso, sem mudança de nível, sem outro fim e mesmo sem grandes novidades, pois o “novo” que a ficção ou a poesia costumam prometer, apenas uns poucos livros, as obras-primas, realmente cumprem.
Daí que não seja unicamente a presença do “novo”, ou da inovação, que leva o leitor de literatura a sentir prazer, pois o novo é raro, e o prazer da leitura é contínuo. A conclusão inexorável é que até literatura ruim é suscetível de leitura boa e prazerosa. Parece paradoxo, mas é consequência: para um leitor habitual, o prazer tem a ver sobretudo com a satisfação de um hábito, ou de um vício, se preferirem — aquele pequeno impulso de alguma glândula que faz todo leitor constante tão somente desejar continuar a ler. Não que seja indiferente o tipo de literatura que ele lê: importa, faz diferença, mas a literatura nunca é avara. Qualquer livrinho, qualquer ficção servem para dar algum barato.
Em oposição a isso, porém, estou sempre a ler artigos de profissionais da área de Letras afirmando que literatura é uma forma de conhecimento, e até uma forma “superior” de conhecimento. Não admira: mal entram na graduação, os alunos aprendem com os professores que o gosto é secundário, que o fundamental está dado por fórmulas fáceis do tipo: “Literatura é a forma por meio da qual estudamos as principais forças sociais a construir a nação ou o Estado” — e, no entanto, quando dizem isso, em geral apenas acomodam a tal “forma” (que, de fato, é apenas conteúdo e lugar-comum) a uma ideia de sociedade prévia que já têm, ou engoliram sem perceber.
Também dizem: “Literatura é uma maneira de aceder ao inconsciente”. Ou, como li há poucos dias, que a literatura é uma forma de “conhecimento fenomênico”. Ou seja, permanece entre eles — ou entre nós, já que também pertenço à categoria — essa vontade de participar do mantra edificante do conhecimento.
Para mim, contudo, opiniões como essa apenas evidenciam a diferença instransponível entre o leitor ocasional, que lê para se informar de alguma coisa ou resolver algum problema, ou o leitor acadêmico, que lê um livro ou uma bibliografia para fazer um estudo e produzir uma tese, e o leitor que realmente sente prazer em ler literatura, e não quer fazer nada com ela. O que ele quer conhecer é apenas aquela história que havia dentro do livro que ainda não havia lido. Esse leitor habitual de literatura não quer conhecer alguma coisa por meio do livro: quer conhecer aquele livro. E, depois de o ler, não pretende fazer nada com alguma outra coisa que houvesse aprendido. Ele apenas quer ler mais um livro.
Portanto, ao menos para esse tipo de leitor, com o qual me identifico, ideias sobre literatura como permitindo aprendizado do “eu”, da “sociedade”, ou até, como algum dia já argumentou Barack Obama, como exercício de um sentido de cidadania, parece-me a aplicação de fórmulas edificantes e cívicas de autoengano. Talvez até um engano justificado, uma farsa benigna, considerando que possa ser aplicada pelos professores de literatura para defender o próprio salário, o sustento da casa e da família.
É natural e justo defender o próprio emprego. Mas os argumentos que usamos para os eventuais patrões ou pagadores não devem nos enganar a nós mesmos, os que leem por prazer. Quem quer conhecimento, por meio dos livros de ficção, pode fazer uma tese a respeito deles, mas é bem diferente de um leitor habitual de literatura, que pode ter uma tese, mas sabe que ela não diz o mesmo que a literatura, e não satisfaz como ela. Em suma, os professores de literatura que defendem a ideia de que a literatura é também uma Professora agem de maneira a argumentar a favor da valorização e da institucionalização do seu ofício.
E é natural e justo que se defendam, ainda mais num meio político e cultural tomado pelo utilitarismo mais reles e predatório, onde a rapina em nome do mercado passa o rodo na política, na ideia de res publica, e finalmente na própria democracia. Por que diabos tal ambiente manteria o luxo do gosto de alguém? Vale dizer portanto que, no empuxo da sarjeta mercantilista, alguém que defenda que a democracia depende da educação literária me parece agir muito bem, ainda que não seja verdade.
Não é verdade pelo que já disse: fora de sua defesa profissional ou institucional, as pessoas que leem literatura diariamente e que se sentem desacomodadas quando não podem ler, ou não estão lendo — estas pessoas não se importam em aprender coisa alguma com o que leem. Se estivessem mesmo atrás de conhecimento, iriam ler filosofia, história, ciência etc., áreas que podem lhes prometer conceitos, explicações, mas raramente uma história bem contada ou um poema bem urdido, capazes de nos entreter a ponto de não nos importarmos se aquilo é verdade ou não. Para nós, aliás, fica sendo, pois, ao menos desde Hesíodo, as musas sabem “muitas mentiras dizer símeis aos fatos” (Teogonia, 27-28). Na “mentira símil” da literatura, não há erro; as musas atuam tanto para a mentira como para a verdade. Como diz bem Jacyntho Lins Brandão: “Os deuses (verdadeiros) sabem mentir”.
Enfim, quem é viciado em literatura tem o mesmo tipo de fixação e dependência de qualquer outro viciado: o que eles querem é a droga, no caso, a literatura. Querem o prazer de continuar lendo. Por que é tão difícil admitir isso, e em vez disso temos de dizer que lemos para aprender, ou para nos tornarmos melhores cidadãos? Porque tal é o mundo: as pessoas não podem se dizer em busca do prazer, têm de dizer que estão trabalhando para que alguém mais enriqueça. Então vamos fingir que é assim.