O gosto da leitura

Entre preguiça e contemplação, a leitura se transforma em ritmo de vida, feita de pequenos acontecimentos sem finalidade
Ilustração: Thiago Thomé Marques
01/10/2025

O gramado do jardim amanheceu coalhado de flores rosas, caídas dos ipês próximos. O dia parecia delicioso. Tirei o casaco que vestia só para sentir um pouco de frio. Eu me sentia tão bem, que era como se tivesse saído de uma semana inteira de confusão mental. Tudo parecia tão bonito lá fora que, por um instante, até pensei em pegar o livro e dar uma volta com ele por aí. Mas eu não pensei tão a sério assim. Eu era preguiçoso demais para isso. Enquanto pensava na minha preguiça, vim para a cama com o livro e recomecei a ler da página em que tinha parado ontem. Pensei então que seria gostoso ficar um tempo no presente da enunciação, dizendo o que estou lendo, só para curtir o momento. Mas eu não estou lendo quase nada, porque estou pensando sobre o que estou fazendo encostado na cabeceira da cama, com o livro aberto nas mãos. Meio deitado na cama, porque sempre que me sento, escorrego um pouco. Agora já não está tão cômodo. Está um pouco frio, um pouco morno, mas está divertido também. O que mais? Nada mais. Estou bem aqui, encarando o livro.

Sinto uma ligeira cócega nas costelas voltadas para a janela. Acho que é um ventinho que entra por ela. Vem da direção sudeste. Deve trazer chuva. Viro-me na cama para olhar o céu e percebo que ele ainda está azul, mas já se intrometeram na imagem algumas nuvens escuras. Capaz de vir chuva por aí. Aí, no caso, é aqui. Está bem gostoso aqui. Tão gostoso como ficar ao relento numa noite estrelada, olhando para o céu como se fosse uma coisa do outro mundo. Aquilo parece tão grande e tão sem fundo que você necessariamente se sente fora daquilo. Você está numa espécie de janela olhando para aquilo. Ou você está fora ou é o céu de estrelas. Agora estou sentindo que as minhas costas estão um pouco fora da cama, mas não chega a ser incômodo. É até um pouco gostoso esse suave deslizamento.

Ler num dia como esse não é nenhum desperdício, como me disseram algumas vezes. Eu poderia até pegar um livro melhor do que o que estou lendo. Mas não acho que valha a pena, não. Está tão agradável, é bom ter um livro que não é tão bom assim para ler. Acho que, num dia assim, é melhor não fazer nada muito exigente. Não é que, neste momento, só esteja me sentindo apto para leituras breves, mas seria bem agradável ler frases curtas. Acredito que possa ler com alegria também frases muito longas, mas agora elas não me apetecem. Estou gostando mais das breves. Estou gostando de ficar aquém da medida de corte. Isso não torna as frases atraentes, não é isso que quero dizer: torna-as apenas mais curtas.

Daqui onde estou vejo que o gato subiu na poltrona e olha para fora. Ele gostaria de sair, mas não pode. Não pode porque a persiana o impede de pular pela janela. Então, após alguns minutos de consideração, o gato prefere pular de volta ao chão. Fica ali, parado, considerando, olhando. A consideração do gato está praticamente toda posta sobre o olhar. Isso me parece esteticamente muito satisfatório: a posição do gato, a sua consideração posta inteira sobre o olhar. Agora ele se move. Foi-se para dentro da casa, e eu já não o vejo. Que bom. Não quero me sentir obrigado a acompanhar o gato. Melhor que ele se vá e eu tenha a vista livre para olhar outra coisa. Mas também não quero buscar outra coisa para olhar. Basta ver o que aparece no meu campo de visão. Assim é mais gostoso ver o que se passa e não ficar pensando que tem a ver comigo. Isso é só o que estou achando agora, enquanto leio um pouco, não é nenhuma lição de vida ou de psicologia. Estou apenas tentando ler uma frase, e olha que ela é bem simplória.

Fico pensando se o quase nada que estou lendo chega a ser uma história. Nesse caso, a história que estou lendo é apenas uma sequência de acontecimentos, mas não uma história fechada de acontecimentos mutuamente implicados. Eu acompanho os acontecimentos, e eles permanecem abertos para fora da história. A história corre ao encalço dos acontecimentos, mas não os contém — felizmente. Se os contivesse, a história acabaria virando um romance, ou coisa assim. Essa ideia repugna um pouco o que me vem ao olhar. Conter acontecimentos, fazendo-os contar uma história fechada dentro dela mesma é bem limitante para mim agora. Deixar que a história seja apenas uma perseguição de uma sequência de coisas, ao contrário, é divertido, é até libertador. Que história podem dar essas coisas que seguem outras coisas? É o que vou comprovar depois que eu chegar ao fim da história. Como não é um conto ou romance, nem os acontecimentos estão mutuamente implicados entre si, isso pode parar em qualquer lugar, ou pode nem parar mais. Não sei quem decide. Eu prefiro não decidir nada. Fico muito aliviado por não ter de decidir nada por aqui.

Então que acontecimentos seguir? Devia começar por um acontecimento dentro de uma narrativa simples, sem contenção de início ou de fim. Um exemplo de narrativa simples seria acompanhar o alinhamento entre o olhar do gato retesado na poltrona e o corpo de um passarinho sobre o galho de uma árvore do lado de fora. Isso é uma cena verossímil. Mas a verossimilhança pode acabar levando à ideia de uma finalidade da história, e quando isso acontece acaba ficando meio cansativo. Acho importante, importantíssimo, aplicar medidas às frases para que a leitura da história ganhe ritmo e siga o caminho desimpedido dos acontecimentos, sem que nada tente detê-los dentro de si, ou de uma finalidade.

Não acredito que a finalidade esteja inscrita na natureza. Uma coisa bem clara é o fim, outra coisa é a finalidade. A finalidade não é tão boa como o fim, porque a finalidade perverte a grandeza própria das coisas. Quando têm uma finalidade, as coisas se encaminham para aquilo que a finalidade impõe a elas. Por exemplo: se uma coisa está cheia de paixão, a finalidade vai submeter essa paixão a uma disposição finalista que não faz nada bem à paixão. Não há nenhum paradoxo aqui. Basta seguir o fio das coisas e ver onde vai dar para perceber que uma finalidade é uma desgraça para a coisa: impõe-lhe um destino, cerceia demais a sequência simples dos acontecimentos.

Acho que já não é preciso ficar nesta posição meio paralisada em que estou, como um gato que observa o passarinho até o fim de seus dias. É possível mexer as costas, arrumar o travesseiro, testar as circunstâncias. É possível até dar um cochilo no meio da leitura. Essa liberdade do cochilo não tem nada demais. É ótima como teste rápido de histórias sequenciais. Estou bem concentrado na leitura agora, mas depois, sem perceber, posso cochilar e ter de voltar à página de novo, como fiz logo que vim para cá. É verdade que a história, se fosse muito boa, devia me prender e não me largar cochilando por aí. Mas se a história quiser inventar um cochilo pelo meio, pode também. A leitura aceita tudo da história que ela segue. Aceita até que a história desapareça por aí, enquanto eu fico a espiar idiotamente feliz a página vazia.

Que delícia isso que se lê como um dia que se acaba quando viro a página.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho