O cerne político bem datado da vida de Jesus contada na versão final da peça Jesus-Homem, de 1978, dificilmente deixaria de ser percebido por alguém. Por exemplo, como deixar de relacionar os decretos da personagem do Sumo-Sacerdote, que proibia a livre reunião das pessoas da comunidade e a crítica pública às autoridades, com os famigerados Atos Institucionais decretados pela ditadura militar? Como se sabe, os AIs suspenderam os direitos políticos dos cidadãos, além de outras garantias democráticas constitucionais, como o funcionamento do Superior Tribunal Federal, a liberdade de imprensa e de expressão, favorecendo, por outro lado, a instalação da Censura Federal, as prisões e torturas à margem da lei etc. etc.
E se a luta contra os decretos colocava a resistência à ditadura no horizonte da peça, da mesma maneira, o conflito central entre os discípulos Judas e Pedro, que ocupava todo o primeiro plano de representação da vida de Jesus, também era facilmente transportado para a conjuntura política brasileira —em especial, para a associada aos dilemas da esquerda e das forças da oposição democrática.
O cerne da discordância entre ambos tinha a ver com a estratégia a ser adotada pelos cristãos na luta contra os dois principais obstáculos à liberdade do seu culto, o Império Romano e os sacerdotes do Templo, ou, de outra maneira, o poder do Estado e o da Religião, as duas instâncias oficiais desafiadas pela ação de Cristo. No que dizia respeito à finalidade última da ação, Judas e Pedro não tinham discordâncias. Ambos concordavam que o que devia ser buscado era a conversão dos homens e a implantação do novo reino de Cristo na Terra — sendo que esse “na Terra” parecia ser capaz de absorver o céu, uma vez que o plano místico da peça era bem menos evidente.
O problema da disputa estava, portanto, nos meios, não nos fins da ação: a posição de Judas tendia a ser imediatista e a desqualificar pudores éticos no combate aos inimigos, numa espécie de maquiavelismo avant-la-lettre, enquanto a de Pedro era mais estratégica, considerando sobretudo o momento de emergência do “tempo propício” à sublevação cristã, que, segundo pensava, ainda não havia chegado, pois poucos estavam preparados para dar “testemunho com a própria vida”. Nesse dualismo, o “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”, de Geraldo Vandré, seria, portanto, puro Judas: uma incitação ao levante imediato.
Tal debate, visto pelo público dos anos 1970, em larga medida universitário, facilmente seria traduzido por dilemas políticos da própria oposição à ditadura. Do lado de Judas estariam as posições dos grupos autodenominados de “vanguarda revolucionária”, cuja ação arrojada, armada, funcionaria como exemplo e gatilho para a ação de outros setores progressistas da sociedade. Já do lado de Pedro, futuro patriarca da Igreja oficial católica, estariam os defensores de modelos mais prudentes e institucionais de ação, como seriam usualmente os adotados por políticos de oposição tolerados pelo regime, então filiados ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB), ou pelos adeptos do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partidão.
A posição de Plínio Marcos, entretanto, não cede a nenhum dos dois lados; ela apenas se resolve com a intercessão do próprio Cristo, cuja formulação sintetiza e supera as posições antagônicas dos discípulos. Para Cristo, nem o realismo político de Pedro (possivelmente oportunista), nem o voluntarismo militarista de Judas (provavelmente irresponsável) representariam a escolha de uma ação verdadeiramente redentora. A condição para que esta ocorresse seria de outra ordem: um compromisso pessoal com a palavra do Cristo, pois parecia claro que faltava “consciência” das ideias propagadas por Jesus; sem ela, desalojar Herodes do poder poderia significar apenas a substituição de um tirano por outro.
Ou seja: as ideias cristãs precisariam ser entendidas e transformadas em formas de vida, e não apenas aceitas abstratamente como teoria ou crença. O revelador, entretanto, é que Plínio Marcos formula esse compromisso pessoal, em primeiro lugar, com a noção de “autoconhecimento”, um termo vago — ou uma “noção confusa”, nos termos de Chaïm Perelman — que remete longinquamente a uma perspectiva socrática, na qual a centralidade do homem na ordem da razão é reafirmada.
Mas o que exatamente significaria “autoconhecimento” na encenação de Jesus-Homem? A resposta não é fácil, justamente porque o termo dá a impressão de ser autoexplicativo, mas ao mesmo tempo dá margem a significados muito diferentes. Já se pode adiantar, porém, que o uso que Plínio faz dele nada tem de “socrático”, se este sentido for pensado em termos de primado exclusivo da razão. Para compreendê-lo, de fato, seria preciso avançar além das considerações estritamente políticas suscitadas imediatamente pela peça, ainda que a política jamais deixe de estar presente nela. Pois é nessa política que aponta para além de si mesma que reside o germe da religiosidade que Plínio propõe como “subversiva”.
Nesse caso, “autoconhecimento” estaria primordialmente associado a um valor ao mesmo tempo ético e psicológico: a coragem de assumir uma experiência da própria fragilidade e pequenez da pessoa, o que deveria conduzir à quebra da arrogância e do autoengano presentes nas posições dos dois discípulos. Ou seja, tanto Pedro como Judas têm a crença em Jesus como semelhante a uma ideia de poder, o que, para o Cristo de Plínio, seria fundamentalmente falso. Para este, o mais importante seria submeter-se à experiência concreta de fraqueza que é própria dos homens — ou, de outra forma, abrir-se à falta que é constitutiva da condição do humano. Apenas com a admissão da sua fraqueza, o homem poderia sentir junto a si a presença real de Jesus.
Se Judas queria ação a qualquer custo, bastando para isso a disposição de luta, e se Pedro queria retardar a ação pelo conhecimento prévio e negociado das circunstâncias, o Jesus Cristo de Plínio, conquanto partidário incondicional do pobre e do oprimido, exigia mais: a adoção de uma perspectiva irredutivelmente pessoal e frágil da religião, ainda que voltada para o outro. Não havia como tomar um atalho que saltasse o compromisso individual difícil para chegar diretamente ao movimento coletivo pleno. É essa a lição do Cristo de Plínio às facções representadas pelos discípulos.
De outra maneira, o que se pode dizer é que o primeiro passo de um ato de experimentação do sagrado implicaria no comprometimento pessoal entendido como consciência do erro: na falha é que a consciência assoma no indivíduo e não no acerto da razão. Só depois de se certificar do quanto está sob o domínio do erro, o cristão estaria apto a aderir a um movimento de luta coletiva, fora de qualquer compromisso formal ou institucional. Nesse misticismo de entrada individual e saída coletiva, o autoconhecimento da falha funciona como preparação para uma religiosidade que recusa poder e religião institucionais — por isso, subversiva.