O Evangelho segundo Plínio Marcos (3)

A peça “Jesus-Homem” é um ataque às desigualdades sociais e à repressão da ditadura brasileira
Ilustração: Cesar Andrade
01/09/2023

Continuando a pensar sobre a noção de “religiosidade subversiva” empregada por Plínio Marcos para se referir a certo conjunto de peças importantes e bem-sucedidas criadas por ele, detenho-me especialmente em Jesus-Homem, um drama musical que, como vimos nas colunas anteriores, foi bastante modificado ao longo dos dez anos de sua primeira versão até que Plínio o considerasse finalizado.

O grande desafio dessa forma derradeira de Jesus-Homem estava no ajuste de diferentes camadas de tempos e de formas na produção do seu efeito final. Havia inicialmente o tempo do passado histórico — ou mítico, como quiserem — da vida de Cristo, tal como narrada nas Escrituras e transposto de maneira sintética e seletiva para a narrativa dramática. Havia ainda o tempo da apresentação musical dos sambistas de São Paulo, que cantavam as tênues esperanças que sustentavam a vida difícil no presente das periferias urbanas do Brasil, e especialmente de São Paulo, onde o processo capitalista produzia e atraía a miséria em escala industrial.

Não era tudo: havia também a disposição articulada desses dois tempos (passado bíblico e presente histórico) e dessas duas formas (representação dramática e canto popular) dentro do tempo de apresentação da peça, que ganhava assim um caráter misto ou híbrido. Tal disposição operava nas duas direções, isto é, tanto os eventos da vida de Cristo eram interpretados pelas canções dos sambistas paulistas como fonte de esperança para o duro quotidiano dos mais pobres, como essa mesma vida repletas de sofrimentos — que os sambistas conheciam na própria pele, pois nenhum deles tinha qualquer apelo mercadológico — passava a ilustrar exemplarmente a via dolorosa providencialmente cumprida por Cristo.

Vamos dizer assim: numa mão, as canções produziam uma espécie de hermenêutica da esperança, na qual o conhecimento da vida de Cristo era uma mensagem poderosa de justiça e de remissão de toda miséria da vida presente. Na outra mão, os pobres, e apenas eles, eram a parte da humanidade anunciada como sendo verdadeiramente análoga a Cristo, e, portanto, partícipe da identidade divina. Cristo, deste ponto de vista, realmente vivia nos pobres, dando-lhes uma identidade quase sacra.

Está claro que essa via de mão dupla criada pela peça proporcionava um aggiornamento político da história de Cristo. Um exemplo disso está dado pelo episódio em que Jesus prega no templo e diz que não veio “trazer a paz”, mas sim “trazer a espada” para lutar por “todos os que sofrem”. Ou seja, aqui, o Cristo armado de Plínio revela uma face francamente vingadora, belicosa e antiburguesa, semelhante à que se podia ver, por exemplo, n’O evangelho de São Mateus, o filme dirigido por Pier Paolo Pasolini, que fora lançado em 1964. Nas duas obras “subversivas”, Cristo é representado com a veemência política de um jovem líder revolucionário que tem partido desde o primeiro momento. O seu partido é aquele dos “oprimidos”, os únicos admitidos no “reino de Deus”, o que também implicava em que a guerra liderada por Cristo era feita frontalmente contra os ricos.

No mesmo sentido de atualização política, há outra cena da peça em que a personagem do Sumo Sacerdote — a notar o SS, das iniciais do título — atribui a Cristo o atributo de “subversivo”. No caso, tendo em vista a conjuntura brasileira, o epíteto ecoava muito claramente o vocabulário de produção de labéus utilizado pela repressão policial da ditadura. Vale dizer, o termo pretendia desqualificar quem se opusesse a ela como se fosse inimigo do Brasil, um traidor da pátria, enfim.

A ideia desse tipo de propaganda repressiva era a mais tosca possível: estigmatizar toda oposição a ela como tendo origem em ideias estrangeiras, genericamente “comunistas”, e alegadamente contrárias à liberdade individual das pessoas e à felicidade coletiva do país. E ainda compondo o repertório de desqualificações incluídas no labéu, poder-se-ia dizer que o termo “subversivo” indicava alguém cujo comportamento era contrário a Deus e à fé cristã — esta naturalmente compreendida de maneira muito conservadora e dada como genuinamente brasileira. Tratava-se, portanto, de uma propaganda primária, certificadamente desonesta e deliberadamente calcada na tentativa de infantilização política do cidadão comum.

Na peça de Plínio, por sua vez, acentua-se o fato de que esse emprego negativo do termo servia ao propósito do “Sumo Sacerdote”, qual seja, o de desqualificar as boas novas trazidas por Cristo. Sendo, entretanto, Cristo, como pressupõem os que creem nele, o arauto fiel da verdadeira religiosidade, fica demonstrado, de um só golpe, tanto a má tenção do Sumo Sacerdote, como o esforço da peça em reverter positivamente o instrumento da estigmatização — subversivo, sim, mas a serviço da verdade. Ou, de outra maneira: subversivo apenas em relação às falsas verdades alardeadas pelas autoridades da religião chapa-branca de um estado intolerante.

Os aspectos classistas, sociais e manifestamente políticos das mensagens do Cristo de Plínio Marcos são tão explícitos em Jesus-Homem que há mesmo alguma dificuldade em tornar verossímil, na lógica interna da peça, os passos em que ele afirma aos discípulos, como consta das Escrituras, que o seu reino “não é desse mundo”. Não parece ser assim, pois durante toda a peça, ao contrário, Cristo fala quase exclusivamente dos males e desigualdades bem palpáveis deste mundo. Em consequência, o que se fixa na mente do espectador é que a ação reparadora da fé praticamente se concentra sobre as injustiças geradas no mundo dos homens.

Essa perspectiva terrena da religiosidade, e, portanto, do sentimento místico, não é nenhuma novidade em termos históricos, mesmo em terras brasileiras. Nisso, Plínio poderia ser associado a uma longa tradição do pensamento profético-milenarista que se disseminou no Brasil. Desde os padres Antonio Vieira e Gabriele Malagrida, no século 17, até Antonio Conselheiro e tantos outros, a “consumação do Reino de Cristo na Terra” é proposta no âmbito da história humana, sem que isso exclua a sua realização posterior em um tempo de glória, puramente espiritual.

No entanto, a julgar por essas passagens que citei, nem sequer a tradição milenarista parece muito ajustada ao desenvolvimento de Jesus-Homem. Tudo parece muito voltado para o combate político na conjuntura brasileira. É assim, por exemplo, que já no início da peça, Isaías prega à multidão corrompida e critica os “decretos injustos” que alienavam os pobres de seus direitos. Mais uma vez, com essa crítica à suspensão dos direitos da população pobre, Plínio colocava no primeiro plano da representação cristológica tanto a questão da desigualdade social, como a da opressão política.

Isso não implica, entretanto, que o emprego do termo “subversivo” nas peças tenha exaurido semanticamente o significado do termo “religiosidade”. É o que se verá a seguir.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho