O Evangelho segundo Plínio Marcos (2)

A narrativa dos episódios da vida de Cristo, tal como Plínio a concebeu, está contaminada pelo lirismo popular e semimarginal do samba
Ilustração: Cesar Andrade
01/08/2023

Como ficou dito na coluna anterior, Plínio Marcos, em 1967, tinha escrito e montado uma peça intitulada Dia virá, que encenava episódios da vida de Jesus Cristo, para espanto dos críticos que até então celebravam as suas peças violentas sobre o submundo urbano paulista e brasileiro, muito longe do idealismo do teatro de esquerda sobre as classes operárias. Nos anos seguintes, Plínio continuou trabalhando na peça sobre a vida de Cristo, dando-a por terminada apenas em 1978, desta vez com um novo título: Jesus-Homem.

Nessa última versão o núcleo dramático das ações estava centrado menos em Jesus do que em dois dos seus principais discípulos: Judas, o futuro traidor e suicida, e Pedro, o futuro patriarca da Igreja Católica, sendo que, entre os dois, irrompe um grande desentendimento sobre a melhor estratégia de ação apostólica. As ideias de Judas, na peça, são voluntariosas e belicistas; de acordo com elas, os cristãos deveriam reagir imediatamente à agressão que sofriam, e, para isso, lançar mão de todos os meios disponíveis, incluindo a violência e o uso de armas.

Já Pedro, menos impulsivo, defendia uma estratégia mais dilatada no tempo e mais mediada em termos políticos. Para ele, a ação apostólica deveria se pautar sobretudo pelo esforço de preparação da consciência dos fiéis para a nova forma de vida entrevista por meio do testemunho de Cristo. Assim, mais do que reagir aos não-cristãos, ou combatê-los, era fundamental compreender o significado específico da conversão cristã, tal como a que ele próprio vivera.

Por ora, entretanto, deixo suspensa a discussão sobre o desenvolvimento desse debate que vai ser decisivo para a interpretação última da peça, a fim de anotar outro aspecto incontornável nessa nova montagem: a música. De fato, a grande novidade da nova montagem era que a ação estava toda pontuada por canções compostas e interpretadas por sambistas radicados em São Paulo, como Toniquinho Batuqueiro, Talismã, Zeca da Casa Verde, Jangada, Geraldo Filme, entre outros. Eram músicos que compunham, cantavam e tocavam num ambiente popular alternativo, fora do circuito da música comercial de qualquer gênero, incluindo o do samba carioca mais veiculado nas rádios e televisões.

Este, portanto, é um aspecto que não pode ser ignorado na interpretação de Jesus-Homem: a narrativa dos episódios da vida de Cristo, tal como Plínio a concebeu, está contaminada pelo lirismo popular e semimarginal das canções incluídas na peça. Ao revisitar alguns dos episódios mais conhecidos do Novo testamento, Plínio o faz considerando a mediação ativa dos sambistas que coloca em cena. As composições que eles apresentavam, por sua vez, tinham algum vetor místico, mas não no sentido de ecoarem passagens bíblicas ou sermões de qualquer religião determinada. O que os sambistas executavam eram sobretudo cantos de esperança alinhados a uma longa tradição de messianismo e resistência popular.

Nas letras das músicas, os sambistas falam sobretudo de uma espécie de centro misterioso da natureza humana, que, por sua vez, se define por oposições. Por exemplo, ligada ao mistério do homem está uma série de provações e sacrifícios a que ele é submetido, mais ou menos correspondentes à vida de carências das pessoas mais pobres. Ocorre que, ao mesmo tempo, tais sacrifícios inerentes à pobreza, também participam de uma, por assim dizer, economia salvífica na qual até a dor, afinal de contas, faz parte do caminho para a redenção (“abençoada seja a dor”).

Ou seja, no limite dessa concepção, haveria uma passagem necessária pelo sofrimento e pela morte (“se é preciso morrer”) para se chegar à salvação (“para nascer de novo”). Essa formulação ecoa antigas tópicas católicas da conversão, que naturalmente estão longe de constituir uma perspectiva progressista nos anos 1970 do século 20. Mas, da mesma forma que no passado, ela é aplicada pelos sambistas de maneira solidária e consolatória, no sentido de que está ajustada a um tratamento paliativo das misérias sofridas pelos mais pobres. Ou, para dizê-lo de outra forma, a verdade da religiosidade vivida nas rodas de samba está sobretudo calcada no alívio do sofrimento das camadas pobres da população.

Também se poderia dizer que as canções dos sambistas ritualizam, isto é, reorganizam de forma supratemporal (que, portanto, “vence o tempo”) a vida difícil dos trabalhadores, reinserindo-a em seguida num eixo teleológico orientado para a redenção. Nesses termos, contra todas as circunstâncias adversas, e ainda contra qualquer tipo de lógica ordinária, nada é mais relevante do que manter viva a esperança radical na vinda de melhores dias (“Renascerá/ em cada coração”).

Assim, é bem evidente que Plínio não teme encenar em Jesus-Homem vários clichês de matriz religiosa de origens populares diversas, sem a menor pretensão de ortodoxia ou de hermenêutica especializada. Tudo o que o canto dos sofredores deseja alcançar é o milagre de transformação da miséria da vida presente em caminho para que venham dias melhores. Com isso também, Plínio recria o contexto social que julga ser a razão da crença popular na figura de Jesus Cristo.

Na peça, está claro que o samba é um documento importante da fé popular no Brasil, mas ela quer saber mais: que tipo de ação política a fé consolatória é capaz de sustentar? Para responder a isso, é preciso retomar o debate dos discípulos, que deixamos suspensos lá atrás. E o que primeiro se pode notar nele é que o debate não se restringe a eventos do passado. Há um aspecto alegórico ou figural na maneira como é construído que o projeta da história bíblica para a história do Brasil contemporâneo e, em particular, para as maneiras coletiva de combate à ditadura.

Além disso, como é imediatamente perceptível para quem vivia o contexto daquela época, Plínio adota um procedimento recorrente no meio teatral, submetido a censura prévia, qual seja o de transferir situações complicadas daquele momento para outros espaços e tempos. Adotando esse mesmo procedimento, o Teatro de Arena produziu várias peças críticas à ditadura que foram montadas e fizeram grande sucesso, como Arena conta Tiradentes ou Arena conta Zumbi. Não que seja uma grande novidade. Já no século 17, os jesuítas Emanuele Tesauro e Baltasar Gracián propunham a “arguzia”, ou “agudeza”, como um tipo de figura de grande eficácia ao fingir distante no espaço e longínquo no tempo o que se quer criticar aqui e agora.

Ou seja, na peça, há pelo menos três camadas enunciativas sobrepostas: a primeira é a da vida de Cristo, rebatida no debate entre Judas e Pedro, e que se passa no tempo literal das Escrituras; a segunda é a do canto dos sambistas de São Paulo, a afirmar a esperança em meio às misérias do presente; a terceira é a da articulação entre esses dois tempos do enunciado dentro do tempo de enunciação da própria peça, cujo foco, como se verá, está posto no futuro possível do país.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

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