Com o título de Religiosidade subversiva, em junho de 1986, Plínio Marcos publicou um pequeno volume, editorialmente malcuidado como era costumeiro em suas edições de autor, contendo três peças: Jesus-homem, que já havia recebido diversas versões até a final, em 1978; Madame Blavatsky, de 1985; Balada de um palhaço, de 1986.
O que exatamente Plínio Marcos queria dizer com “religiosidade subversiva”? Que tipo de poder essa noção invocava, já que se propunha a “subverter”? Qual o componente místico desse poder, desde que implicava em “religiosidade”? Mais ainda: que diferenças essa noção de “religiosidade” mantém com a de religião? E o que exatamente é preciso subverter? A si mesmo, ao outro, à sociedade? Ou seja, trata-se de uma subversão íntima e/ou política e social? Mais especificamente: há alguma forma artística capaz de sustentar tal invocação ou de se ajustar especialmente a ela? Ela é exclusivamente teatral, ou se aplica também a obras de outros gêneros praticados por Plínio como a prosa de ficção, a crônica e a memorialística?
Questões como essa, suscitadas constantemente por várias obras de Plínio Marcos, não apenas por esse volume, raramente são levadas a sério pelos seus estudiosos. Por formação intelectual laica, estão mais propensos a estudar o seu inconformismo em termos políticos do que nas formas que abrangem alguma forma de “religiosidade”.
Para começar a enfrentá-las, entretanto, convém reforçar o ponto de que esse assunto não é exclusivo dessas três peças. Por exemplo, o conhecido monólogo O homem do caminho, cuja versão final é de 1996, e que podemos considerar o testamento literário de Plínio, tem claramente o mesmo viés inquiridor e místico. Essa peça, em si mesma, já é uma adaptação para a cena de um conto bem anterior que Plínio intitulara Sempre em frente, e que apareceu no segundo volume das suas Histórias populares (Canções e reflexões de um palhaço), saído em 1987. Aqui, as datas não são academicismo, mas índices relevantes para percebermos a extensão do tema em sua carreira.
Tanto no conto original, como no monólogo baseado nele, ocorrem plenamente as principais tópicas dessa fórmula dúplice que Plínio Marcos julgou adequado utilizar. Assim, determinando-se mutuamente, os termos “religiosidade” e “subversiva” estabelecem claramente, em ambos os textos, uma espécie de dupla recusa. Primeiro, recusa das religiões formais, concebidas ou praticadas de maneira burocrática, em favor de um gesto espiritual irredutível e contrário a qualquer institucionalização eclesial. Segundo, recusa de quaisquer políticas partidárias oficiais, o que se evidencia já pelo emprego do termo “subversivo”, o qual se tornou especialmente popular no Brasil durante o período da Ditadura Militar, quando era aplicado pelo aparato policial do Estado para criminalizar e justificar a violenta repressão aos seus opositores que atuavam à margem do sistema político submisso ao governo golpista.
A expressão, portanto, apresenta uma conjunção forte de espiritualidade e política, que não chega a ser surpreendente no Brasil dos anos 60 e 70, período de grande prestígio da Teologia da Libertação que militava no mesmo viés. Por isso mesmo, na década seguinte, entre 1984 e 1986, receberia duras condenações da Igreja Católica, emanadas diretamente do papa João Paulo II e do cardeal Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (o qual, depois, viria a herdar a tiara papal, como Bento XVI).
O efeito mais terrível do expurgo operado pela Cúria romana em seus quadros mais combativos, hoje, está claro para todos. A Igreja Católica se retirou das assembleias de base das periferias brasileiras, entregando-as de bandeja para o pragmatismo assistencialista das igrejas neopentecostais, que hoje lá se encontram. E pior: muitas vezes, associadas a milícias paramilitares, gerando um “novo modelo de negócios” — para usar os termos de Bruno Paes Manso. Um concurso tão sórdido de militarismo, religião, narcotráfico, neoescravismo e império mafioso que ainda não recebeu um nome à altura.
No caso de Plínio Marcos, porém, essa conjugação de pensamento místico e atividade política não poderia ser mais contrária a essas confluências históricas desastrosas recentes que se abateram sobre o Brasil. O que Plínio buscava era uma oposição prática e espiritual a ideologias assimiladas institucionalmente a uma vida burguesa, mesquinha em seus valores ou ausência deles, extensamente submetida a uma visão autoritária de sociedade, cujo produto mais cabal bem poderia ser resumido por expressões cínicas como “cidadão de bem” ou “patriota”.
Mas como descrever essa noção aparentemente paradoxal de “religiosidade subversiva” no interior mesmo das obras literárias e teatrais de Plínio Marcos?
Para tentar uma aproximação desse tipo, gostaria inicialmente de dirigir a atenção para a primeira peça do conjunto, Jesus-homem, incluindo algumas circunstâncias dela ainda pouco estudadas. Trata-se de um espetáculo montado por Plínio a partir da versão modificada de uma peça cujo título era Dia virá, representada mais de dez anos antes, mais precisamente em 1967.
A estreia paulistana de Dia virá causou perplexidade no meio teatral que se acostumara a ver o nome de Plínio Marcos associado a temas da vida marginal urbana contemporânea. Desta vez, entretanto, o tema da peça era nada menos do que a vida de Jesus Cristo. Não bastasse essa estranheza, o espetáculo do alardeado autor maldito fora encomendado e apresentado por um colégio católico de elite de São Paulo, o Des Oiseaux, tendo como intérpretes os próprios alunos daquele Instituto, então dirigido pelas Cônegas de Santo Agostinho.
Diante do caso, alguns críticos teatrais da época — como João Apolinário, responsável pela coluna de teatro do jornal Última Hora, em sua edição paulista, que até então tinha Plínio Marcos em alta conta (“o autor brasileiro mais importante no momento”) — ressaltaram a “contradição” e “paradoxo” que a peça significava no âmbito de sua obra.
Os senões e reparos recebidos nunca fizeram Plínio desistir da peça. Ao contrário, parecem tê-lo motivado a lhe dar seguidos desdobramentos. De fato, ao longo dos anos, Plínio a foi modificando substancialmente até chegar a um novo espetáculo que mesclava música (com especial destaque para o samba paulista que ele conhecia profundamente) e cultura popular religiosa (cujo cristianismo estava longe de ser exclusivamente católico).
O propósito de Plínio com Jesus-homem, no entanto, continuava sempre o de Dia virá: compor uma narrativa singular dos episódios conhecidos da vida de Jesus, ligando-os ao presente brasileiro.
Plínio, por assim dizer, estava redigindo o seu Evangelho. O seu núcleo dramático, contudo, bastante imprevisto, girava em torno de uma suposta discussão travada entre Judas e Pedro, dois diletos discípulos de Jesus.
É o que veremos na próxima coluna.