Embora desde muito jovem tenha escrito como crítico literário em jornais e revistas, comentando todo tipo de literatura, boa parte de minha carreira acadêmica se fez em torno da produção letrada dos jesuítas dos séculos 16 a 18, ou seja, desde a criação até a extinção da Ordem no período pombalino. Não era um assunto trivial na época de meus estudos de formação, e o é ainda menos agora, quando os estudos de literatura contemporânea ocupam grande parte da atenção na área de Letras.
Entre os países da América Latina, o Brasil é dos menos desenvolvidos em termos de estudos coloniais em geral, e de produção letrada eclesiástica em particular. Não vou aqui me deter nas razões desse desprezo pela história literária colonial, mas não há dúvida de que a perspectiva predominantemente nacionalista ou a submissão da ideia de literatura ao conceito de independência nacional tiveram e ainda têm aí um papel-chave.
Esse desinteresse está marcado mesmo na história de quem escolheu estudar colônia, como foi o meu caso. Os meus dois orientadores, Haquira Osakabe, do mestrado, e João Lafetá, de doutorado, conheciam pouco sobre colônia e quase nada sobre as letras jesuíticas. Não acho que tenha perdido algo definitivo por isso, pois entre ter especialistas medíocres a orientar a minha pesquisa ou contar com a interlocução inteligente de professores excepcionais, como era o caso de Haquira e de Lafetá, estou seguro de que a segunda é a melhor opção.
Seja como for, razões como essas fizeram com que os caminhos dos meus estudos sobre o padre Vieira fossem um tanto erráticos, em boa medida conduzidos por encontros mais ou menos fortuitos, entre viagens com apoio apenas eventual das agências de pesquisa, e absolutamente nenhum apoio das embaixadas brasileiras no exterior, sendo que elas poderiam ser úteis, no mínimo, para fornecer carteiras internacionais para os docentes e informações sobre os arquivos e bibliotecas locais.
Apenas para dar uma ideia: para conseguir entrar na Biblioteca Secreta do Vaticano, precisei ingressar com carteira assinada pelo presidente francês da época, que obviamente nunca vi mais gordo, mas que a Academia Francesa em Roma tinha disponível, já assinada, para todos os pesquisadores franceses devidamente reconhecidos. Graças a Andrea Daher, uma colega brasileira que estudava na França, tive as apresentações que me permitiram aquela carteirinha preciosa que, no Vaticano, me abriu todos os arquivos e bibliotecas.
Pois bem, como orientador, o que eu tento fazer, em parte, é evitar ao máximo essas situações de dificuldade de acesso e direcionamento. Não que o acaso possa ser controlado, mas é possível indicar aos alunos caminhos com maiores chances de levar ao lugar certo, sem tanto sofrimento.
Por exemplo, demorei uma eternidade para descobrir o mais óbvio que um pesquisador dos jesuítas deveria saber, vale dizer, que o endereço-chave de qualquer estudo sobre eles é Via Borgo di Santo Spirito, 8, nas terras extramuros do Vaticano, uma rua surpreendentemente silenciosa a desembocar lateralmente na espetacular colunata de Bernini, como a conter o tumulto da Praça São Pedro. Nesse lugar, com indicações mínimas à porta, encontra-se o Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), o mais importante arquivo privado da Companhia de Jesus no mundo.
A relevância do acervo do ARSI para os estudos coloniais no Brasil, seja qual for o domínio de conhecimento envolvido, não pode ser suficientemente amplificado. Uma ideia do seu alcance foi produzida em 2002, com o chamado Projeto Resgate — Barão do Rio Branco, de iniciativa governamental — há cópia dele em várias universidades. Na Unicamp, por exemplo, há uma no Arquivo Edgar Leuenroth.
A extensão italiana do Projeto Resgate foi conduzida por Maria lêda Oliveira, que descreveu o acervo do ARSI enquanto mestranda em História do Brasil e depois doutoranda em História Moderna pela Universidade Nova de Lisboa-Portugal. Embora seja um projeto brasileiro, apenas soube dele de maneira casual, quando eu mesmo já tinha batido cabeça para chegar ao ARSI.
Assim, em termos gerais, a descrição de Maria lêda Oliveira especifica que o ARSI “está constituído de três partes: Archivio Antico (1558-ca. 1773), Archivio Moderno (ca. 1814- aos nossos dias); e Fondo Gesuitico (séc. 16-19). As partes estão repartidas em várias seções e estas subdivididas em séries. (…) No fundo do Archivio Antico foram inventariadas as séries Congregationes, Institutum, Historia Societatis, Epistolae Nostrorum, Vitae, Opera Nostrorum, Polemica, Provincia Brasilae et Maragnonensis, Provincia Lusitanae e Provincia Paraquariae. No Fondo Gesuitico as séries Procura Generalis, Assistentiae Societatis, Epistolae Selectae, Censura Librorum, Miscellanea, Epistolarum Coflectio. De Missionibus. Collegia e Manuscripta Selecta et Libri Editi. E, do fundo do Archivio Moderno, a documentação da seção Assistentiae et Provinciae, ou seja a Nuova Compagnia”.
O mais fértil material para o desenvolvimento de meus estudos sobre a produção letrada do padre Vieira encontrei exatamente nas diversas séries dos fundos Antico e Gesuitico, somadas ao impressionante acervo da Biblioteca Histórica da Companhia de Jesus (BIHSI), e ainda ao acervo da Biblioteca da Cúria da Companhia de Jesus.
Assim, para que eventuais estudiosos dos jesuítas não tenham de passar pelos mesmos caminhos de barata tonta que passei, faço aqui este brevíssimo alerta geral sobre o acervo, descontadas eventuais alterações que não pude perceber ou testemunhar.
Outro texto que ajuda muito a compreender o tipo de organização feito no imenso acervo do ARSI é o manual publicado por Thomas M. McCoog, S.J.: A Guide to Jesuit Archives, editado em 2001, pelo Institute of Jesuit Sources, de St. Louis (USA), em coedição com o Institutum Historicum Societatis lesu, de Roma.
De modo geral, diria que o ARSI é bem organizado e bastante acessível a pesquisadores documentados, mesmo que apenas por suas instituições de origem. Geralmente uma simples entrevista com o diretor do acervo resolve favoravelmente o ingresso.
Um problema que parece grave no início é que o seu horário de funcionamento é curto: das 9h às 12h15, e depois das 14h às 16h15 para a Biblioteca e 16h45 para o Arquivo. Na prática, são no máximo cinco horas de consulta e estudo por dia. De início, isso parece atrapalhar toda a programação suposta nos projetos originais, ainda mais para quem tem pouco tempo para ficar na cidade.
Entretanto, depois que se começa diariamente a matar tempo passeando pelas maravilhas ao redor, de que Praça e a Basílica de São Pedro são apenas o tesouro mais reluzente, e ainda a conhecer os bares e tratorias ao redor, avançando por toda a região benestante do Prati, o horário curto de trabalho parece um tipo de benção da Fortuna, acrescentado ao de poder fazer o trabalho in loco, e não num site qualquer, que é mais ou menos como ver só o já visto, ou, pior ainda, o que se quer que veja.