Há muitos e muitos anos atrás, junto com um colega de Departamento já falecido, Luis Dantas, me propus a traduzir um dos textos que mais me impressionaram em meus estudos do século 17 francês, o célebre Réflexions ou sentences et maximes morales [Reflexões ou sentenças e máximas morais], de François VI, Duque de La Rochefoucauld (1613-1680). Sobre o livro, de que optamos por traduzir tomando como base a quinta edição, de 1678, a última corrigida em vida do autor, eu já havia escrito alguns textos e dado alguns cursos, nos quais invariavelmente tanto eu como os alunos ficávamos aturdidos pelo rigor analítico e simétrico de suas frases posto a serviço de uma verdadeira demolição de todo tipo de verdade edificante sobre o homem. Nietzsche ou Proust certamente não encontrariam boa parte de suas sentenças mais corrosivas e desenganadas se não tivessem sido devotados leitores do velho aristocrata seiscentista.
Traduzir, entretanto, é diferente de simplesmente ler ou estudar, e talvez nenhum exercício como o da tradução seja mais capaz de apontar as nuances, as sutilezas, e também as camadas mais complexas envolvidas na compreensão de um grande autor. Nunca publicamos a nossa tradução, seja porque nunca chegamos realmente a dá-la por encerrada — havia sempre alguma insuficiência notória que acabávamos por perceber em relação ao original, e agora mesmo, ao me decidir a publicar aqui um pequeno trecho dela, me vi obrigado a fazer várias correções de última hora —, seja porque, a certa altura, saiu a edição de uma colega da PUCSP, Leda Tenório da Motta, e achamos que não faria sentido publicar, ao mesmo tempo, uma versão concorrente das Sentenças, sendo ela uma excelente tradutora profissional do francês. A nossa tradução mais ou menos nos bastava como uma prática divertida, a despeito de empenhada, e permaneceu sempre inédita.
Volta e meia, entretanto, volto a ela, corrijo alguma coisa, percebo o que não vai bem, tateio um pouco por ali, e, enfim, trato logo de voltar ao texto original que já li e reli tantas vezes, sempre com admiração e prazer. Pensando, contudo, que talvez algum leitor do Rascunho se interessasse em ler em português esses aforismos tremendos, busquei selecionar alguns deles para publicar aqui. E considerando as milhares de mortes de que ficamos sabendo diariamente, e sobre as quais não faltam bravatas e grosserias da pior espécie pronunciadas pela gente vil que usurpou o poder no país, achei que calhava bem trazer aqui a tradução do fragmento 504, que justamente discute a falácia do desdém diante da morte.
Eis o que diz La Rochefoucauld a respeito:
Após ter falado da falsidade de tantas virtudes aparentes, é razoável dizer alguma coisa da falsidade do desprezo pela morte. Digo desse desprezo pela morte que os pagãos se vangloriavam de extrair de suas próprias forças, sem esperança de uma vida melhor. Existe diferença entre suportar constantemente a morte e desprezá-la. O primeiro ponto é bastante comum, porém creio que o outro jamais é sincero. Apesar disso, escreveu-se tudo o que poderia haver de mais persuasivo a respeito de a morte não ser um mal; os homens mais fracos, assim como os heróis, deram mil exemplos célebres para firmar essa opinião. Eu duvido, entretanto, que alguém de bom senso já tenha acreditado nisso. Já o esforço empregado para persuadir aos outros e a si mesmo bem demonstra que a empreitada não é fácil. Podemos ter diversos motivos de desgosto na vida, porém jamais temos razão para desprezar a morte. Ainda aqueles que voluntariamente tiram a vida a si mesmos não têm a morte por coisa tão pequena e, como os demais, horrorizam-se e a repudiam, se ela lhes chega por uma via distinta da que escolheram. A desigualdade que notamos na coragem de um número infinito de homens valorosos deve-se a que a morte se revela de modos diferentes à sua imaginação e mostra-se mais presente num tempo do que em outro. Assim, ocorre que, após terem desprezado aquilo que não conheciam, eles temem enfim aquilo que conhecem. Se não quisermos acreditar que ela é o maior de todos os males, será preciso evitar encará-la em todas as suas circunstâncias. Os mais hábeis e os mais bravos são os que encontram os pretextos mais honestos para impedirem-se de tomá-la em consideração. Porém qualquer homem que saiba vê-la tal como é, admite que é coisa pavorosa. A certeza de morrer determinava toda a constância dos filósofos. Eles acreditavam que era preciso ir de bom grado aonde não podiam evitar de ir; e, não podendo eternizar suas vidas, não havia o que não fizessem para eternizar as suas reputações e livrar do naufrágio o que não podia estar a salvo. Contentemo-nos voluntariamente em não dizer a nós mesmos tudo aquilo que pensamos, e esperemos mais de nosso caráter do que desses frágeis arrazoados que nos fazem crer que podemos nos aproximar da morte com indiferença. A glória de morrer sem abatimento, a esperança de ser lembrado com saudade, o desejo de deixar uma bela reputação, a confiança em estar livre das misérias da vida e em não mais depender dos caprichos da fortuna são remédios que não devem ser rejeitados. Porém não devemos acreditar também que sejam infalíveis. Eles fazem pela nossa confiança o mesmo que frequentemente faz, na guerra, uma simples cerca para dar confiança aos que devem se aproximar do lugar de onde atiram. Quando estamos afastados, imaginamos que possa cobrir-nos, porém, quando estamos próximos, percebemos que é de pouca valia. É vanglória acreditar que a morte nos pareça de perto aquilo que julgamos de longe, e que nossos sentimentos, que não passam de fraquezas, sejam de uma têmpera forte o bastante para não sofrer dano algum na mais dura de todas as provas. Também é conhecer mal os efeitos do amor-próprio pensar que possa nos ajudar a achar que não é nada aquilo mesmo que deve necessariamente destruí-lo; da mesma maneira, neste encontro com a morte, a razão, na qual acreditamos encontrar tantos recursos, é fraca demais para nos persuadir do que queremos. Ao contrário, é ela que mais frequentemente nos trai e que, ao invés de nos inspirar o desprezo pela morte, faz-nos descobrir o que tem de horrendo e terrível. Tudo o que a razão pode fazer por nós é aconselhar-nos a desviar os olhos para colocá-los em outros objetos. Catão e Brutus escolheram os ilustres. Um criado, há algum tempo, contentou-se em dançar no cadafalso onde ia sofrer o suplício da roda. Assim, embora os motivos sejam diferentes, produzem os mesmos efeitos. De sorte que, por mais desproporção que haja entre os grandes homens e as pessoas comuns, a verdade é que já vimos uns e outros, mil vezes, receberem a morte com um mesmo rosto. Com a diferença, porém, de que, no desprezo que os grandes homens afetam diante da morte, é o amor pela glória que lhes desvia a vista, enquanto nas pessoas comuns é apenas o efeito das parcas luzes que as impedem de conhecer o tamanho de seu mal, deixando-as livres para pensar em outra coisa.