Literatura & conhecimento

Escaldadas com o tratamento duro, as artes aprenderam a defender-se inventando a posse de um “conhecimento” capaz de justificar as suas atividades vagamente suspeitas
29/10/2018

“Literatura é uma forma de conhecimento”, diz-se comumente. Dizem-no especialmente os professores de letras. É uma maneira valente, embora convencional, de defender a literatura e o ofício de quem estuda literatura, cada vez mais acusado de inútil numa sociedade de mercado. O curioso, contudo, é que não se trata de uma acusação recente. Historicamente, até as outras áreas das humanidades costumam apontar o dedo para a literatura e as artes em geral. Mesmo a filosofia, que nunca foi exemplo de pragmatismo, se opôs sistematicamente a elas. Desde Platão, ao menos, ela arroga para si o lugar da razão e concede à arte o porão da insensatez criativa: lá onde presidem os afetos, o irracional e o fantasmático, vale dizer, onde prevalecem vetores de deformação do real. Por outro lado, quando acertam com o real mais esquivo, os seus feitos tornam-se ilustração de um conceito que existe em sua origem ou fim.

Escaldadas com o tratamento duro, não apenas da filosofia, mas ainda da sociologia, da história e de outras ciências que, em algum momento da formação de sua disciplina, assumiram falar no registro do ser e da verdade, as artes aprenderam a defender-se inventando para si a posse de um “conhecimento” capaz de justificar as suas atividades vagamente suspeitas. No entanto, quando se começa a pensar que elas podem ser dignificadas por uma ideia, teoria ou, enfim, por certo tipo de conhecimento que formula a sua essência ou a sua finalidade, o que parecia remédio ou atenuante acaba trazendo problemas ainda maiores para elas.

Vou tentar me explicar.

Para começar, a noção de “conhecimento” introduz naturalmente ou logicamente outras noções, como as de propósito e de constituição racional de um argumento, cujo andamento ordenado sedimenta-se numa ideia bem descrita ou formulada. Ou seja, a noção de conhecimento assenta-se no cerne de um tipo de operação que ascende da obra ao conceito.

Um importante filósofo neotomista, Étienne Gilson, observa justamente que, no interior de um processo de conhecimento, o fundamental é aceder ao conhecimento. Como consequência disso, uma vez que o conhecimento seja alcançado, o instrumento ou veículo utilizado para aceder a ele torna-se imediatamente dispensável. Um célebre paradoxo wittgensteiniano descreve perfeitamente a questão: se você precisa subir ao segundo andar de um prédio e usa uma escada para subir até lá, por que continuar carregando a escada consigo depois de ter chegado onde queria?

Assim, se lêssemos um poema ou um romance para discernir alguma questão, seja ela pessoal, social ou metafísica, no mesmo instante em que formássemos um conceito mais preciso dessa questão, o poema ou romance lidos, enquanto intermediários desse saber que buscávamos, teriam cumprido a sua função principal e poderiam ser abandonados como jornal do dia anterior.

Entretanto, pode haver algo de mais estranho à obra de arte do que julgá-la superada pelo conceito gerado ou explicado por ela? Ou, falando no sentido contrário, há algo mais característico da obra de arte do que, justamente, depois de a ver, ler ou pensar sobre ela, passar a amá-la e não querer mais deixá-la de lado? Quando a obra de arte é convincente, o movimento irresistível é justamente o de voltar a ela, muitas vezes: ter livros de que não se pode separar, filmes que se quer ver de novo e de novo, músicas que se tornam como que propriedades pessoais, lembranças íntimas, e, por isso mesmo, impossíveis de abandonar.

Afinal, as obras não são ultrapassadas por nenhum conhecimento gerado por elas. Antes de se extrair delas o que possa ser transmitido ou conceitualizado por meio delas, quer-se retornar a elas sempre que possível, apegar-se à memória constituída por elas, e manter-se aberto, a cada vez, para a experiência de estar em presença delas. E ainda será preciso considerar que experiência artística nunca é igual à da vez anterior: pode ser melhor, diferente, ou mesmo pior; pode-se considerar que nos diz agora mais do que antes, ou, ao contrário, que envelheceu mal, e que talvez nem valha mais a pena olhar para ela. Ainda assim, esse juízo não tem como assegurar-se de si mesmo: num outro momento, nova peripécia pode dar-se, e o que parecia arruinado revela a beleza insuperável que só existe nas ruínas.

Ou seja, quando se trata de arte, não há como dispensar a obra e ficar apenas com a ideia dela. O retorno à obra, que Italo Calvino observou ser típico do reconhecimento de um “clássico”, evidencia algo mais essencial e que é mesmo próprio de toda obra de arte, a saber, que ela diz respeito, primeiro, a uma fatura objetiva que se põe diante de nós; segundo, que ela não pode ser trocada ou quitada pelo conhecimento que possa fornecer.

Esse duplo aspecto intransitivo da obra de arte torna-a avesso a qualquer tentativa de convertê-la em metalinguagem, isto é, em discurso que a supera em termos de esclarecimento conceitual. Quando se conhecem os objetos de arte, o valor que se pode atribuir a eles guarda sempre alguma relação com a experiência havida com eles: dar um passo além e, por exemplo, traduzi-los por informação, ensinamento ou sabedoria, acrescenta pouco e arrisca perdê-los de vista, isto é, arrisca perder o pulso advindo de sua presença objetiva.

Não estou dizendo que, diante das obras de arte, a única atitude deva ser a de paralisia, perplexidade ou espanto, como querem alguns poetas extáticos. Quero dizer apenas que a precedência epistemológica advém sempre de um corpo a corpo com as obras, no qual a inteligência crítica levanta possibilidades e alternativas para lidar com elas. E as obras permanecem ali, como presença irredutível ao conceito. Tenho vontade de dizer: como um Bartleby que não se pode expulsar do escritório. E não porque essa presença seja inefável, abscôndita, secreta, mas porque é rigorosamente objetiva. É objeto, obra, feito, efeito de um fazer: forma. Enquanto tal, apenas admite interlocução que a traga consigo. A sua integridade reside no fato de ser intransferível.

É por isso que a obra de arte que mais interessa, seja intelectualmente ou afetivamente, quando é traduzida conceitualmente, parece muitas vezes banal, quase irrelevante. As peripécias que existem na própria obra —, por exemplo, o encadeamento complexo de imagens e razões, a simetria das figuras, a estrutura de suas tensões, a disposição precisa, que deixa escapar agora um sentido que reaparece depois… —, apenas se podem tatear e aferir em contato e frequentação da própria obra. Diversamente do conhecimento, a arte não dá passagem, não cede o passo ao conceito, não dá acesso a nada que possa subsistir longe dela mesma, seja como ideia, finalidade ou intenção.

Pode-se dizer, portanto, que a obra de arte se esquiva de qualquer tentativa de interpretá-la que pretenda ganhar autonomia em relação a ela. Interpretá-la significa apenas repô-la em circulação, observá-la de um novo ângulo, dar-lhe novos parentescos como novas obras, e, enfim, propor novas possibilidades de estar com ela.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho