Letras & motos

"A mão do deserto", de Paulo Franchetti, é um relato fascinante de uma viagem solitária ao deserto do Atacama a bordo de uma moto
Ilustração: Eduardo Mussi
01/03/2022

As recentes manifestações contra a democracia, cometidas por turbas de motoqueiros que desfilaram orgulhosamente a própria boçalidade e decadência pelas vias de várias cidades brasileiras, parecem ter dado cabo de vez da velha simbologia hippie associada às motos. As estradas abertas ao léu e ao sonho pelas drogas psicodélicas foram atiradas às sarjetas do golpismo. Os motoqueiros disputaram pau a pau — mas jamais cabeça a cabeça — o ultrajante posto de vanguarda do atraso, também cobiçado por hostes de milicianos e de fundamentalistas. Tudo em nome da tradição, da família e da propriedade da liberdade.

As motocicletas mereciam esse destino pós-nazista em que se viram metidas? Por mim mesmo não saberia dizer, mas um bom e velho amigo, Paulo Franchetti, está empenhado em mostrar que não. Busca arrancá-las de lá tanto ao participar da criação do movimento “Motociclistas pela democracia”, com endereço conhecido no Facebook, como ao escrever A mão do deserto (Ateliê, 2021), relato de sua viagem solitária ao deserto do Atacama a bordo de uma possante máquina alemã — mais precisamente, uma BMW, GS Adventure. 1200 cilindradas. Claro que não tenho a menor ideia objetiva do que signifiquem essas especificações, que mal consegui perceber no livro.

Mas tenho uma boa ideia do que sejam orelhas de livros. Em geral as considero quase tão infensas à realidade quanto as motociatas ridículas que mencionei acima. A julgar exclusivamente pelas orelhas — que bem mereciam alguma dissertação ou tese —, sejam elas curtas ou compridas, épicas ou líricas, quaisquer livros, todos os livros, estariam aptos a candidatar-se ao Prêmio Nobel e rivalizar com Kafka e Joyce, dois escritores que mais ou menos os orelhistas são capazes de nomear de cor, mas que quase certamente não leram, ou não teriam enfiado os livros divulgados por eles em tão vexaminosa comparação.

Mas o caso é que o Paulo Franchetti me pediu uma orelha para o seu livro. E eu que, além do dever da amizade, já o tinha lido em provas, sempre com prazer, e até dado uns palpites aqui e acolá, me senti apto a atendê-lo. Assim, num instante, com lápis e papel à mão, me pus a cometer a minha própria orelha. Advirto, porém, que deixei que repousassem em paz não apenas Kafka e Joyce, mas todos os prêmios Nobel da história.

Ficou assim:

De motocicletas, não entendo nada. A rigor, meu conhecimento se resume a dois pontos: 1) ter assistido Easy rider dezenas de vezes; 2) ter lido Zen e a arte de manutenção das motocicletas: uma enquete sobre valores logo que saiu e descobrir que a contracultura dos anos 60 admitia também uma metafísica literária de longa duração. Fora disso, havia apenas a convivência estreita com o meu colega de turma na Unicamp, Paulo Franchetti.

O que mais me admirava nele não era a nossa sintonia literária, mas a nossa total dessemelhança no trato das máquinas. Onde eu demonstrava a mais pura inépcia até em ler um simples manual de uso, Paulo via animaizinhos domésticos, que chamava por nomes exatos e deles fazia o que queria. Para terem uma evidência dessa familiaridade de Paulo com as máquinas, basta dizer que um dos livros que fizemos juntos, nos inícios dos anos 80, já foi escrito diretamente num computador de 8 bits. Graças a ele, exclusivamente, que não só conhecia, como se divertia com a linguagem que tinha de dominar para a geringonça funcionar.

Além de computadores, Paulo entendia da manutenção de qualquer coisa acoplada a um motor e mantinha em sua casa um grande painel de ferramentas, exibidas e dispostas ordenadamente, cujo uso podia explicar detalhadamente a algum incauto que lhe perguntasse a respeito. Jamais foi o meu caso. Sempre olhei aquele painel com algum desdém, senão desconfiança, como se fosse um catálogo de borboletas mortas espetadas ali por um temperamento mórbido.

Entretanto, com o tempo percebi que computadores e ferramentas eram tudo signo de uma máquina que era a sua verdadeira Medusa: a motocicleta. Ele a amava com a dedicação e, quase digo com a servilidade que um desgraçado dedica a uma amante voluntariosa, que lhe pedia para passar dias inteiros aos pés dela, e nem por um segundo parecia satisfeita em suas exigências. Por conta desse amor um tanto bizarro pelas motos, asseguro que eu mesmo, inocente diante de tanto frenesi, quase paguei com a vida, como está nalgum passo do livro.

O que gostaria de declarar aqui portanto é que, quando o Paulo Franchetti conta as suas aventuras solitárias Atacama adentro, ele está falando de uma coisa muito séria para ele: o cerne de um assunto que ele estudou nos livros e também experimentou no corpo a vida toda. A verdadeira surpresa, ou, poderia dizer, o verdadeiro presente que ganhamos com este livro é que, aqui, a máquina tem um feliz encontro com a literatura. O Brasil finalmente encontrou o seu Pirsig.

As virtudes literárias deste livrinho, que se lê com gosto o tempo todo, incluem a capacidade descritiva, que se estende das peças da moto ao ritual de pilotagem, da paisagem humana da cordilheira ao relevo do deserto; incluem ainda a força abrupta das reflexões evocativas, levemente melancólicas, e as ações abertas às surpresas do caminho e mudanças de rumo, cujo desfecho inclui reconhecimento e peripécia, ainda que não haja tragédia.

Nada me agrada mais, contudo, do que o ritmo da narração: constante, firme, mas puxada. Não é um ritmo de quem viaja em velocidade de cruzeiro, ou pilota relaxadamente, mas um outro, ágil, improvisado, até intempestivo; no fundo dele pulsa a hipocondria, seduzida pelo perigo e naturalmente pela morte, que teme mais que tudo.

Se fosse me lembrar de Easy rider o ritmo do Paulo não poderia ser o de Peter Fonda, que se recosta na Harley e deixa rolar as rodas como o Clint Eastwood esporeia o cavalo e se entrega ao seu trote. A direção narrativa do Paulo, salvo engano, está mais para o modo Denis Hopper, que a certa altura todos sabemos que vai botar tudo a perder, porque carrega consigo um lado obscuro que apenas se poderá resolver num gesto irresponsável ou temerário. É ficar de olho aberto, pois: tanto para o que Paulo Franchetti nos conta neste relato, como pelo que hesita em contar.

Tal foi a minha modesta contribuição ao gênero encomiástico das orelhas. Acrescento que o comprometimento de Paulo Franchetti com as motos o levou a escrever também um pequeno manual para pilotos dispostos a fazer viagens solitárias por regiões mais ou menos inóspitas (Viagens longas de motocicleta: um manual prático para iniciantes, à venda na Amazon). Por incrível que pareça, também esse manual técnico li com prazer, pela precisão e fluência das descrições. O que seguramente revela também o mérito do escritor, e não apenas o do piloto e mecânico, pois não imagino muita coisa na vida ou no metaverso que desejaria fazer menos do que uma viagem dessas. Em matéria de aventura e risco, não vou além da leitura de livros de autores ou de assuntos desconhecidos. É quanto basta para a minha parca necessidade de adrenalina.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho