Letras coloniais

“Letras coloniais” diz respeito a reconstruir verossimilmente um objeto parcamente conhecido
Ilustração: Aline Daka
01/12/2024

Fui convidado para participar do XV Seminário dos Alunos de Pós-Graduação em Letras da UERJ (SAPUERJ), ocorrido em outubro passado, e como não o poderia fazer in loco, o doutorando que falou comigo, José Delfim, muito gentilmente concordou com a minha participação online, ao lado de dois professores da UERJ, Ana Lúcia Machado de Oliveira e Matheus de Brito. A mesa que propôs se chamava Letras coloniais em perspectiva.

Falei-lhes então menos “em perspectiva” do que “em retrospectiva”, isto é, a partir do meu trabalho na área de Literatura Colonial, cujo núcleo, para mim, sempre foi a reconstrução verossímil de um objeto que se encontrava em más condições de interpretação, seja por arruinado pela longa passagem do tempo, seja pela falta de conhecimento a respeito desse objeto pouco identificado.

Assim, em termos bem diretos, o que eu imagino como “letras coloniais” diz respeito a reconstruir verossimilmente um objeto parcamente conhecido. Isso significaria, antes de mais nada, aproximar-se de seus jogos de linguagem historicamente dados ou datados, e, para isso, seria preciso confrontá-lo com vários outros objetos de mesma espécie. Também significaria conhecer o regime discursivo desse objeto, isto é, as eventuais normas a regular o seu uso.

Ao cabo da descrição bem-feita, seria preciso ainda criar hipóteses de decifração e de interpretação do objeto, vale dizer, propor um ato de juízo que o qualifique em face de outros objetos símiles ou de escopo semelhante. Seria preciso, portanto, encontrar para cada objeto um lugar próprio num quadro de cultura abrangente e pertinente, o qual, por sua vez, estaria obrigado a se rearranjar em função dos novos objetos que passassem a compô-lo.

Esse tipo de tratamento que julgo adequado é estranho e oposto a qualquer tentativa de ler textos coloniais buscando atualizá-los a toque de caixa, ou inseri-los nas discussões mais urgentes ou importantes do presente, sejam relativas a uma teoria da literatura ou da cultura ou das ideias. Em termos particulares, trata-se de evitar associar esses objetos antigos a uma teoria de formação nacional, como manifestação ou prefiguração do que ainda não é, pois o Brasil independente não existe naquele tempo histórico particular.

Da mesma forma, e pela mesma razão, deve-se evitar a associação deles a quaisquer teorias historicamente revisionistas, cujo foco seja a militância a favor ou contra a exclusão política de certos povos ou culturas: os documentos, textos e obras devem ser lidos à distância, com esforço de preservação e inteligibilidade de seus próprios termos.

Em resumo, na minha opinião, quem quiser estudar letras coloniais deve aprender a promover um recuo interpretativo, vale dizer, uma suspensão inicial da interpretação em favor da leitura atenta, em que se reconhece no texto antes de mais nada o estatuto de objeto não identificado. Antes de entender, portanto, perceber manifestamente que não entende: admitir que o ovni existe e está bem ali, na sua frente.

O recuo pode parecer perda de tempo, mas é importante perder esse tempo relativo ao reconhecimento de nossa fragilidade interpretativa diante de um texto cujas regras e práticas estão distantes temporalmente e existencialmente das nossas, a fim de adotarmos procedimentos mais cautelosos de aproximação ou de identificação.

Claro, existem teorias do presente que se acham poderosas diante de quaisquer objetos do passado, e se comportam com eles como os tratores do agronegócio passando por cima das árvores de uma floresta primitiva guardada por gente que consideram inepta ou de segunda classe. A esse tipo de abordagem brutal, eu prefiro os contatos mais cuidadosos —, à imagem da melhor antropologia —, que tratam de limitar o lugar do pesquisador, antes de se lançar ele mesmo, como um bárbaro, sobre o objeto desconhecido.

Há um outro aspecto decisivo em admitir a alteridade ou o desconhecimento do material antigo em análise, e é que, com isso, nós reforçamos o seu estatuto de “objeto”, tanto no sentido de corpus relacional, isto é, objeto de uma investigação de natureza intelectual, como no sentido de ser objetivo, isto é, tratar-se de um fenômeno cultural datado no tempo e no espaço, que precisaria então ser reconhecido nas suas circunstâncias, antes de ser hiperinterpretado em outras, muito diversas.

A experiência de interpretação de que falo é correlata à de aprender um língua nova, um idioma que ainda não sabemos falar. E aprender um novo idioma não é o mesmo que conhecer a história de uma língua ou do lugar onde ela é falada: tem a ver com entender e falar aproximadamente como a gente que vive no lugar. Ou seja, aprender uma língua não é o mesmo que conhecer um “contexto” genérico, mas sim dominar uma certa gramática de usos dos seus termos fundamentais. Não adianta apenas conhecer a história de Roma ou passear pela Roma de hoje para saber ler e interpretar latim: é mesmo preciso conhecer o léxico, a gramática, as normas que regiam o seu emprego. Principalmente é preciso praticar as formas de usar corretamente tudo isso.

Por outro lado, dominar uma língua não significa conhecer um código fechado como pensavam os linguistas estruturalistas. Não é o mesmo que decifrar uma codificação controlada em todos os seus empregos presentes e futuros. No caso de objetos antigos, essa gramática de usos está geralmente definida pela Retórica e pela Poética, sem a qual não eram sequer reconhecidos como obras artísticas ou discursos civis.

No entanto, contrariamente ao que é costumeiro dizer, Retórica e Poética não são códigos fechados: elas preveem a licença, a ruptura das próprias regras, de modo a obter uma emulação competitiva, singular e não servil dos seus praticantes. Isso é importante para que a ideia dos textos individuais, das obras particulares, não se desfaça sob a aplicação rígida de regras sistêmicas. A autoria não se dissolve sob a autoridade, ela se constitui em relação a ela.

Na prática, conhecer um texto antigo implica em estudar, antes de propor uma interpretação, os seus lugares da invenção, vale dizer, os lugares comuns que ele movimenta; os argumentos, ou tipos de provas empregadas segundo o auditório; o registro linguístico efetivamente utilizado nele, incluindo o léxico intelectual vigente e prestigioso em seu período, as figuras de elocução e disposição etc. etc.

Isso se opõe às tentativas atuais que buscam usar um léxico mais tolerante, ou mais desejável, para as descrições feitas nos documentos antigos. Por exemplo, é importante saber que o vocábulo “negro” se aplica indistintamente ao negro escravizado como ao indígena, pois deixar de considerá-lo impede o aprendizado correto do costume ou do sentido dominante naquele período. Atualizar, moralizar ou corrigir o vocabulário antigo é tão inadequado quanto queimar documentos ou censurá-los, pois tem consequências nefastas para a observação realista das contradições do período.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho