Nos dias que correm, com 4 mil mortes diárias causadas pela Covid-19 no Brasil, só tarados não reconhecem a evidência da inépcia criminosa que desgoverna a todos. Falta, entretanto, dimensionar toda a extensão política da catástrofe atual — a meu ver, diferente de todas as outras —, e, para isso, como serviço de utilidade pública, pensei em sugerir algumas leituras. É verdade que as ações de prevenção da tragédia falharam todas, e são elas as que mais lucrariam com o conhecimento advindo das leituras antifascistas. Mas se os livros não bastaram para evitar a peste, os crimes políticos ou a inépcia administrativa, é preciso perceber que a ignorância, ou mais que isso, o ódio contra o conhecimento, é um componente programático do contágio cada vez mais veloz e letal dos fascismos contemporâneos.
O fascismo eterno, de Umberto Eco
É um livro fininho, meio caça-níquel, mas apesar disso interessante, lançado pela Record, em 2020. Nunca tive especial simpatia pelo Eco, e isso não mudou, mas admito que o libreto tem valor como introdução para quem é neófito a respeito do fascismo italiano. Na Itália, como ele próprio alerta, não falaria dessa maneira tão didática, ou tão enumerativa, digamos, porque o fascismo, quando não foi uma experiência direta, é assunto familiar sobre o qual alguém próximo sempre tem alguma história a contar. Mas aqui Eco fala para alunos da Universidade Columbia, de Nova York, em meados de 1995, e pode compor o texto a partir de uma coleção de ideias díspares que, aos poucos, vai dando uma noção mais palpável do que foi o fascismo de Mussolini e do seu potencial destrutivo no mundo contemporâneo.
Os dois conceitos mais originais da conferência são os de “Ur-Fascismo” e de “totalitarismo fuzzy”. O primeiro, cuja origem ele não explica, deriva, de fato, do conceito de Ur-text, da tradição filológica alemã, que refere um texto “ideal”, puramente conceitual, que reúne as melhores opções de um texto cuja história apresenta variantes mais ou menos acentuadas. O Ur-fascismo, da mesma forma que o Ur-text, tenta encontrar uma coleção de ideias e sentimentos relacionados ao fascismo, mas que não são necessariamente encontrados juntos em todas as suas formas históricas efetivas.
Já a noção de totalitarismo fuzzy está associada ao aspecto difuso e sem quintessência do fascismo, isto é, à sua ideologia não monolítica, que mais parece uma colagem de coisas muito diversas. O termo fuzzy, que um guitarrista poderia ligar ao pedal fuzz e às distorções geradas no som habitual do amplificador, não tem a ver com isso. Eco o tomou emprestado da Lógica, na qual é usado para designar conjuntos esfumados, sem contornos ou limites precisos. A ideia, portanto, é de que o fascismo ganha força nessa imprecisão ou mesmo incoerência ideológica, superada sempre pela ideia de força e de violência que não admite nada que lhe seja contrária ou discordante.
Um espião silenciado, de Raphael Alberti
Esse livro, também de 2020, foi-me enviado gentilmente pela Roziane Fernandes, assessora de imprensa da Cepe, Companhia Editora de Pernambuco, cujo catálogo examinei recentemente e achei vários títulos interessantes. Trata-se de uma investigação diligente e obstinada — não exatamente bem-sucedida, porque muitos fatos são ainda confusos e necessitam de comprovação documental —, iniciada pelo autor ainda em seu TCC de graduação em História, na UFRJ, e objetivada em seu mestrado em História, Política e Bens Culturais no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da FGV-Rio.
A partir da investigação das irregularidades nas operações do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) e do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes), dentro das articulações do pré-golpe de 1964, Alberti chegou à primeira menção ao nome de José Nogueira e ao seu trabalho como agente duplo. Cearense, radicado no Rio, Nogueira atuava como jornalista e espião do Serviço de Informações da Marinha (SIM), posteriormente Centro de Informações da Marinha (Cenimar), mas agia também como informante do deputado de oposição Eloy Dutra, e ainda repassava informações sigilosas a jornalistas de esquerda, no tocante a operações ilegais do Ibad-Ipes.
Essa atuação ambígua acabou lhe custando a vida, pois Alberti mostra, com argumentos plausíveis, que Nogueira não se suicidou ou caiu da sacada do seu apartamento na região central do Rio de Janeiro, mas foi arremessado dela. A sua morte não foi imediata, mas posterior a uma internação de vários dias, seguida de uma transferência para um hospital militar. Trata-se, portanto, de um caso intrigante, não estudado até agora, e que apresenta denúncias graves contra os órgãos envolvidos. No entanto, o que mais impressiona da investigação é o quanto os arquivos militares ainda são refratários ao acesso à informação e a liberar documentos de óbvio interesse público, por um tempo muito além do razoável e da lei.
Os engenheiros do caos, de Giuliano Da Empoli
Neste livro de 2019, saído aqui em 2020, o cientista social franco-italiano explica de que modo a junção de ódio pessoal, revolta social e domínio da internet levou um bando de gente ambiciosa e sem escrúpulos a auxiliar o populismo da ultradireita mais rastaquera a tomar o poder em vários países do mundo. São os chamados spin doctors, misto infeliz de ideólogos, especialistas em opinião pública, marketing digital e Big Data.
Os casos estudados, em particular, são os de Gianroberto Casaleggio, que formatou o Movimento 5 Estrelas do bufão Beppe Grillo, na Itália; Dominic Cummings, chefe da campanha abstrusa pró-Brexit; Steve Bannon, o supremacista branco que ajudou a levar à Casa Branca um animador de auditório escroque; Milo Yiannopoulos, blogueiro inglês, fundador da revista The Kernel, cujo eixo é o casamento das novas tecnologias com o ressentimento e ódio dos chamados trolls (algo análogo aos haters); e Arthur Finkelstein, judeu nova-iorquino, gay, que foi decisivo para conduzir à vitória, na Hungria, o ultranacionalista Viktor Orban, o mais acabado retrato da Europa reacionária de hoje.
São essas criaturas da sombra que decidem hoje qualquer eleição: vasculhando dados pessoais dos eleitores, insuflando excitação generalizada, manipulando toda sorte de emoção negativa por meio do disparo de fake news nas redes sociais. São os “engenheiros do caos”, cuja obra são os algoritmos de transformação do usuário em besta-fera. Claro que o ódio tem fermento real também na desigualdade crescente no mundo, mas isso não é identificado como problema e sim a democracia representativa. Contra ela, vale tudo: nacionalismo, xenofobia, racismo, machismo, homofobia, etc. Se a pulsão é reacionária, está valendo.
Dr. Strangelove, a célebre personagem do filme homônimo de Stanley Kubrick, godfather dos atuais spin doctors, tinha de lutar para travar o próprio braço que insistia em fazer a saudação nazista. Os seus herdeiros já não têm essa preocupação. Perderam o medo e a vergonha de ser genocidas e gesticulam histericamente o seu supremacismo vira-lata. Estamos mal, mas ficará pior.