Instruções urgentes para sobreviver aos tempos de guerra (6)

Dicas de um médico durante a Segunda Guerra Mundial ainda são muito úteis ao Brasil atual
Ilustração: Thiago Lucas
01/09/2022

No início do atual desgoverno, quando parecia improvável sobreviver a quatro anos de obscurantismo fascistoide, falei aqui da eventual utilidade de um livrinho curioso que ganhei de uma amiga que o trouxera da Inglaterra. A dedicatória vinha bem a propósito, embora àquela altura nem sonhasse o quanto: “Just take care” [“tome cuidado”].

O livro tem pequenas dimensões — 15 x 11 cm, com 54 páginas —, capa dura, em verde-escuro. Ocupando-a quase por inteiro há um desenho a bico de pena, sem crédito de autoria, de uma família de aparência vigorosa que caminha em frente, como que para um piquenique de fim de semana, embora os passos pareçam largos demais para um passeio ocioso. Se olharmos atentamente, contudo, logo perceberemos que o cenário traz implícita a guerra: o pai, em trajes civis, tem sob o braço um capacete, e a mãe segura, na mão direita, uma bolsa pequena, provavelmente com nada mais do que a carteira e documentos essenciais, e na esquerda, uma cesta básica de víveres medidos e racionados. O filho mais velho, de uns dez anos de idade, caminha ao lado da mãe e usa uniforme escolar, com a pasta às costas, como quem acabara de sair da aula, ou a ela se dirigia; já a filha menor, com quatro anos ou menos, pedala um triciclo um pouco à frente dos demais, mas não desgarrada, ao contrário, com o olhar agudo e concentrado de quem obedecia a disposição geral de seguir avante, aonde fosse preciso. Pai e filho sorriem e, mesmo com a mãe interposta, parecem conversar entre si, enquanto mãe e filha, com o pai entre elas, apenas olham em frente, com atenção e firmeza. No desenho, nenhum deles recebe mais atenção do que o outro, destacando-se sobretudo a unidade e a determinação do núcleo familiar.

O título do libreto, como já havia dito nas colunas dedicadas a ele, é How to keep well in Wartime, que se pode traduzir por Como se manter bem durante a guerra. A edição que ganhei é de 2007, mas transcreve um opúsculo que fora distribuído entre a população por iniciativa dos Ministérios da Saúde e da Informação da Inglaterra, em 1943. Era, portanto, o auge da Segunda Guerra, com o país sofrendo bombardeios nazistas e um duríssimo racionamento de alimentos, transportes e energia.

O autor do opúsculo era um destacado médico do serviço de saúde pública, o Dr. H. A. Clegg, que pretendia fornecer informações aptas a prevenir doenças comuns, físicas e mentais, que afetavam a vida da população. De fato, afetavam até os esforços de guerra, já que, de acordo com cálculos oficiais, os dispêndios com tratamentos de saúde poderiam comprar cerca de 24.000 tanques, 6.750 bombardeiros e 6.750.000 fuzis.

Saúde pública, portanto, também é arma pesada! É o que garante, no prólogo, o sr. Ernst Brown, ministro da Saúde, naquele momento extremo em que estava em jogo a sobrevivência da democracia e a integridade física das pessoas no quadro da guerra. Oxalá os bestificados do atual governo brasileiro percebessem o valor da saúde da população na moeda das armas: quem sabe, cuidassem um pouco mais dela, em vez de deixá-la exposta às doenças e depois empurrá-la para valas comuns, abertas às pressas, como Manaus jamais nos deixará esquecer. Daí também o interesse atual da tradução do opúsculo, em que pese a defasagem de 80 anos que nos separam de sua concepção.

O libreto contém dez capítulos curtos, dos quais, aqui mesmo no Rascunho, já traduzi metade do quinto. Depois, acabei sendo levado para outros assuntos, e deixei a tradução. Agora, contudo, o que pode haver de mais urgente do que se opor ao golpe e se preparar para um estado de sítio? No Brasil das milícias, com crescimento alarmante da fome e dos massacres perpetrados contra a população das periferias — de que os ataques do dia 21/7 passado ao Complexo do Alemão são apenas amostra de uma quase rotina, seja no Rio do Janeiro, ou no resto o país —, fiquei convencido de que retomar o livrinho e traduzir mais alguns trechos dele seria algo relevante. Vamos precisar de alguma tecnologia médica de sobrevivência na guerra.

Sigo, pois, de onde havia parado:

Comidas para arredondar os ângulos
Você provavelmente sabe que os dois outros gêneros básicos de alimentação usados para energia e calor do corpo são a gordura e a proteína [o primeiro gênero, de que o Dr. Clegg já havia falado, era o amido]. A gordura pode estar na forma de manteiga, margarina, leite, banha, resíduos de assados ou cozidos, arenques ou salmão (fresco ou enlatado). Além de dar energia, a gordura também arredonda os ângulos do corpo e ocasionalmente os torna atrativos.

Fosse hoje, e uma observação dessas sobre o arredondamento dos ângulos do corpo poderia até levar o Dr. Clegg a ser cancelado e expulso da ilha que pretendia defender. De minha parte, tentaria acalmar os ânimos contra ele lembrando que o Dr. Clegg é um homem do seu tempo e não via mal nesse tipo de observação bem-humorada diante dos pacientes. E que seja um homem do seu tempo, a própria observação favorável ao arredondamento do corpo o prova, pois esse tipo de modelo já saiu do mainstream estético faz tempo. O que até me leva a outro argumento: se calhar, com todas as voltas que o mundo deu nos últimos 80 anos, a piadinha do Dr. Clegg a propósito da atração das curvas, pode até ganhar, em nossa época, um plus de diversidade em favor de corpos não magros. Seja como for, não é mesmo de admirar quanto debate trepidante de contemporaneidade podem causar as instruções para sobrevivência de um velho médico do século passado?

Além de todos os benefícios da gordura, Dr. Clegg encerra o parágrafo garantindo que ela “[…] também serve como estoque alimentar e como isolante contra a perda do calor do corpo” — o que, bem se percebe, era estratégico na guerra, e volta a sê-lo na Inglaterra de hoje, ameaçada de desabastecimento no pós-Brexit, e pior ainda, de passar o próximo inverno sem aquecimento, com a suspensão do envio do gás pela Rússia.

Em seguida, Dr. Clegg passa ao terceiro fundo de reserva alimentícia do corpo: a proteína.

A proteína a parte magra da carne e a clara do ovo são proteínas (misturadas naturalmente com água) é talvez a mais importante dos três [gêneros referidos antes]. A proteína é o construtor do corpo. É o principal ingrediente das bilhões de células minúsculas que compõem o seu corpo.

É preciso dizer brevemente que consumimos amidos, açúcares e gorduras para ter energia, e proteínas para fortalecer o corpo e conservá-lo em bom estado. Especialistas em alimentos dizem que proteína animal é melhor para esse propósito do que a proteína vegetal (ervilhas, feijões e aveia) e a chamam de “primeira classe”. Obtém-se proteína de primeira classe em carne, peixe, ovos, fígado, leite e queijo, e em alguma dessas formas seria preciso consumir proteína de primeira classe todo dia.

 

Assim, em situações-limite de obtenção de energia e força, como é o caso da guerra, Dr. Clegg não aconselha veganismo, que talvez reservasse para situações de abundância e para classes mais abastadas.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho