Guia mínimo de clássicos

Para recreio do espírito, emoções reservadas e exercício do intelecto durante o período de isolamento social
Ilustração: Isadora Machado
27/06/2020

1. Ilíada, de Homero
Os 24 cantos, em hexâmetros datílicos, atribuídos a Homero (séculos 9-8), são uma compilação e sistematização de antigas gestas, por um ou mais aedos.
Os versos tratam do último dos dez anos que durou o cerco de Troia pelos aqueus. Mais precisamente, a ação se desenvolve durante 51 dias, a contar do momento em que Agamênon retira de Aquiles a escrava Briseide, que conquistara como despojo de guerra. Irado, Aquiles abandona o combate e deixa que os aqueus sofram grandes perdas, até que o desejo de vingar a morte de seu amado Pátroclo, ferido em combate por Heitor, príncipe troiano, o faz mudar de ideia, tornar à guerra e comandar a vitória dos aqueus.
Modelo de toda epopeia posterior, nenhuma arranhou as alturas de seu sublime feito de matéria belicosa. As descrições gráficas das batalhas são impressionantes, como a colocar diante dos olhos o espetáculo inexcedível da guerra. Os movimentos destros das armas a quebrar ossos e penetrar nos órgãos vitais são uma definição ostensiva da ideia de que morrer belamente em combate é a maior façanha que pode almejar um homem excelente.
A destacar ainda a composição surpreendente e graciosa de símiles, especialmente os que residem na observação de fenômenos naturais e de comportamento de animais.

2. Odisseia, de Homero
Certamente posterior à Ilíada, sistematiza, como ela, diversos materiais pré-existentes. São 12 mil versos em hexâmetro datílico, em 24 cantos.
Trata-se, em certa medida, de uma imitação irônica da Ilíada, na qual a arte da sobrevivência, que valoriza sobretudo a astúcia, o engenho, e a opção decisiva pela vida se opõem à “bela morte” em combate buscada nesta.
Outra diferença básica em relação ao seu modelo épico é a incorporação do tempo na narrativa, o que permite à Odisseia desenvolver-se no terreno da comédia, em oposição à tragédia, gênero latente na Ilíada.
O argumento do poema é o retorno de Odisseu a Ítaca, ilha onde é rei, dez anos depois da destruição de Troia. A ação se passa entre 34 e 40 dias, desde a saída de Odisseu da ilha de Calipso até a recuperação da sua casa e reino. Após a reconquista, entretanto, o herói não tarda a abandoná-los novamente.

3. Górgias, de Platão
O diálogo data possivelmente de 387 a.c, época da fundação da Academia e de intenso combate aos rivais da sofística e da retórica siciliana. A cena de base é a ida de Sócrates e Querefonte à casa de Cálicles para ouvir Górgias, cuja aula, entretanto, já havia terminado.
O diálogo se divide em três partes: a primeira, de argumentação dialógica propriamente dita, nas quais os interlocutores são Górgias, com o qual Sócrates debate a natureza da retórica; Pólos, com o qual refuta a retórica, com base na ideia da natureza do justo e do injusto; e Cálicles, com o qual refuta a sofística, que nega a justiça.
Na segunda parte do diálogo, Sócrates propõe que não pode haver felicidade na injustiça. Na última, apresenta uma narrativa mítica de onde se depreende a ideia de que a violação da justiça exige expiação.
Se o Górgias serve como base da condenação filosófica da retórica, dá também testemunho do alto grau de manipulação discursiva implicado nos diálogos platônicos — o que evidencia, por sua vez, a importância decisiva da ficção poética implicada neles. Deixar de ler Platão como poeta é um desperdício quase monstruoso.

4. Retórica, de Aristóteles
Reescritos em diferentes momentos, os três livros da Arte Retórica são ainda um enigma formidável. As frases, muitas vezes, não combinam entre si, exigindo sempre decisões interpretativas do leitor, a começar de sua definição, na qual é dada como “antistrófica” em relação à Dialética.
Cabe pensar ao menos em dois sentidos básicos: (1) a Retórica como saber de ordem discursiva e cognitiva que refere uma competência comum aos homens sem restrição a uma ciência determinada; (2) a Retórica como saber, em certa medida, independente da ética.
Pode ser entendida, nesses termos, como prática fortuita e espontânea (que supõe uma virtualidade ou faculdade natural); e também como empiria e costume (disposições nascidas do modo de ser). Ambos os aspectos são condição do estabelecimento da retórica como arte, entendida como mais do que uma preceptiva, já que contempla a possibilidade de teorizar-se (para conhecer a causa de seus efeitos).
Não há livro historicamente mais mortal para as ciências que pretendem operar num registro de verdade, e não de argumento, ainda que Aristóteles o tenha pensado, antes, como forma de conciliação da prática e do possível com o ideal.

5. Comédia, de Dante Alighieri
O poema foi iniciado por volta de 1304 e apenas finalizado 16 anos depois. Está composto em terza rima (tercina encadeada): tercetos em que o segundo verso de uma estrofe fornece a rima para o primeiro e terceiro da seguinte, produzindo um encadeamento rigoroso de expectativas.
A razão do nome “comédia” é o happy ending da narrativa, e ainda por ser vazado em língua vulgar, o italiano. Trata-se de um tipo de poema épico, que se chamou de “sublime” ou “sacro”, pois os feitos são alegóricos e espirituais. O termo “divina” foi ajuntado a “comédia” apenas em 1555, por Ludovico Dolce.
Compõe-se de três grandes partes — Inferno, Purgatório e Paraíso —, cada uma delas subdividida em 33 cantos, mais o primeiro canto introdutório. Ao todo: 100 cantos, 14.233 versos.
O argumento é a viagem de Dante no Além-Morte, a qual dura cerca de uma semana, com início na noite de Sexta-feira Santa, em oito de abril de 1300. Da selva escura em que se encontra, o poeta cristão, conduzido inicialmente por um poeta pagão, Virgílio, desce ao Inferno. Este tem a forma de um cone invertido a partir de Jerusalém, no topo do hemisfério; através de nove círculos infernais chega ao centro da terra, onde está preso Lúcifer.
Nos antípodas de Jerusalém, em hemisfério desconhecido do homem, está a porta do purgatório, ao pé de uma alta montanha em cujo cume está o Éden ou Paraíso Terrestre.
A partir daí, guiado por Beatriz, o poeta ascende ao Paraíso, através da esfera do Fogo. Atravessa nove céus concêntricos à Terra, até chegar ao Empíreo, onde os beatos formam círculos graduados em forma de rosa luminosa, a “cândida rosa”. Daí em diante o poeta sobe até Deus, através dos nove círculos angélicos, guiado por S. Bernardo.
Resumido assim, até pode dar a impressão de uma viagem psicodélica, sob efeito de drogas pesadas. Não é o caso. De fato, é o maior momento da razão e da imaginação católicas, se se considerar que as Escrituras, afinal, são textos usurpados de religiões mais antigas. Talvez seja mesmo o ponto-chave das letras ocidentais, se se considerar que emula à altura o antigo pagão e conquista definitivamente para o vernáculo a possibilidade de abrigar as maiores viagens da inteligência e do espírito humanos.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho