Fábula e folia

Peças infantis evidenciam o domínio de Plínio Marcos do palco e da plateia
Ilustração: Tereza Yamashita
28/01/2019

As peças infantis de Plínio Marcos (1935-1999), ainda que pouco conhecidas, tanto evidenciam o seu imenso domínio do palco e da plateia, como demonstram o quanto é redutor o rótulo de “autor maldito” que acabou colando sobre ele, ainda que não poucos considerem a expressão uma forma de elogio.

De modo geral, essas peças combinam dois aspectos principais na sua estruturação: a representação da fábula enquanto alegoria moral e a palhaçada física de circo. Em ambos, há profunda interação entre o palco e as crianças da plateia, por meio de afetos e gestos variados, que vão da aflição ao desafogo, do temor à crueldade, da apreensão à excitação e à incitação da balbúrdia pura e simples.

Vejamos, por exemplo, o que acontece na primeira de suas peças do gênero: As aventuras do coelho Gabriel, de 1965. De modo geral, ela é organizada com base no modelo tradicional da fábula, vale dizer, um gênero de narração breve, de natureza alegórica, no qual muitas vezes as personagens são bichos. Mas eles, por sua vez, têm características que reenviam o que se passa no mundo animal para a realidade humana na forma de um ensinamento didático de fundo moral.

Nas três aventuras de estrutura fabular reunidas nesta peça, as personagens principais formam dois grupos antagonistas: o dos vilões da história, que são o gato Miau-Miau e a onça Malhada, e o dos animais simpáticos ao público, encabeçados pelo coelho Gabriel e o macaco Chico Prego. Dentro de cada um desses grupos, os primeiros relacionados são mais inteligentes e os segundos mais ingênuos, embora essas características tenham efeitos diversos, segundo os animais sejam vilões ou heróis: a ingenuidade da onça é sinal de rusticidade e tolice, enquanto a ingenuidade do macaco tende a significar inocência e boa-fé. O mesmo vale para os dois bichos mais astutos: a esperteza do gato é associada à covardia e ao maquiavelismo, enquanto no coelho ela é um atributo fundamental para que seja capaz de resistir e revidar aos ataques dos animais mais fortes.

Em cada uma das três aventuras, os vilões põem em marcha algum ardil para capturar os heróis, invariavelmente descobertos pelo coelho a tempo de salvar a própria pele e a do amigo, para então revidar ao ataque dos vilões aplicando-lhes um implacável castigo físico. O sucesso desse revide se traduz por um pensamento moral que valoriza a astúcia e a inteligência em detrimento da força, assim como a lealdade aos amigos em oposição à traição.

Há também algo menos trivial a se observar no antagonismo das duplas: a astúcia do gato incorpora sempre um planejamento, uma maquinação, seja quando estabelece um plano de ataque ao coelho e ao macaco, seja quando se aproveita de uma etapa desse plano para se vingar da onça, uma aliada que nunca lhe inspira confiança. No caso do coelho, a astúcia se liga muito mais à prontidão de espírito, que o faz perceber rapidamente a armação contra ele e reagir diante dela com adequação, eficácia e graça. Ou seja, a astúcia elogiada pela peça não é nunca intelectualista ou utilitária, mas engenhosa e prática, posta sempre a serviço da própria sobrevivência, da preservação da liberdade própria e dos amigos.

Mas se a peça infantil de Plínio Marcos é construída como alegoria moral e as ações dos bichos são metáforas de situações da sociedade humana, é preciso considerar que elas exercem uma literalidade da ação como só se encontra no puro gesto, na mímica, na pancada, na correria e na algazarra. Quero dizer: se o que disse antes mostrava que os conflitos das personagens e a natureza dos seus caracteres podiam ser traduzidos por sentenças morais, adequadas à estrutura fabular, há um aspecto do teatro infantil de Plínio que não admite qualquer tradução para fora do plano no qual as ações se executam como performance de uma brincadeira e, mais especificamente, do tipo de brincadeira conduzida por palhaços no picadeiro de um circo. A sua formação circense está nítida aqui.

Considerando-se esse segundo aspecto das peças, também se entende melhor a funcionalidade da atuação dos bichos em duplas antagonistas, uma vez que um deles serve de “escada” para o outro, como nas tradicionais duplas de palhaços em que sempre um prepara a situação em que é enganado pelo outro, leva os safanões que merece, escorrega, atrapalha-se, bate a cabeça, foge em meio à plateia etc. É a atuação conjunta das duplas que incentiva as crianças do auditório a tomarem partido de uma ou de outra personagem e, em seguida, passarem elas mesmas a atuar na peça como torcida em vias de invadir o palco. Por isso, as crianças são também destinatárias de muitas das falas das personagens que usam procedimentos de “à parte”, seja para informá-las antecipadamente do que pretendem fazer, seja como busca de “triangulação”, quando os diálogos não são apenas conversas entre elas, mas avisos e deixas ao auditório, cuja resposta é decisiva para a sequência da ação.

E, no que toca a esse aspecto performático, as peças infantis de Plínio Marcos são exuberantes: não há situação criada que não se torne ocasião propícia à palhaçada, seja entre amigos ou inimigos; quando da hora de preparação do plano dos vilões ou no momento do suspense de sua execução; seja no desempenho da desforra dos heróis ou, enfim, na grande balbúrdia do espetáculo em que as crianças da plateia ocupam-lhe o centro.

É fundamental para a execução das cenas de palhaçadas a caracterização de conflitos bem definidos entre as personagens, de modo que tenham sempre alguma disputa entre si, mesmo quando pertençam ao mesmo grupo de aliados. Por exemplo, se o coelho Gabriel e o macaco Chico Prego são bons amigos, isso não os impede de pregarem-se peças e trocarem valentes pancadas. Outro exemplo: quando o macaco diz que “quem caçar cobras ganha cenoura e quem caçar borboletas ganha bananas”, o propósito evidente é enganar o amigo coelho, reservando-lhe a parte mais difícil da empreitada, o que, por sua vez, desanda numa animada troca de pauladas entre eles. Da mesma forma, quando a dupla de vilões atua no palco, o tempo reservado para a tramoia que preparam nunca é maior do que o reservado para o ataque mútuo, de maneira que, antes de bater nos outros, acabam se batendo entre si.

Essas situações confrontacionais previstas na peça devem ser executadas fisicamente e são parte decisiva do argumento central delas, que não pode ser resolvido alegoricamente apenas. Elas demandam uma atuação que leva a uma movimentação física dos atores, a qual acaba arrastando consigo as crianças. Em suma, as peças infantis de autoria de Plínio Marcos jamais se restringem à lição edificante, ainda que elas estejam lá e sejam importantes dentro da ética proposta para o espetáculo. Elas incorporam também a literalidade da ação, da correria e da bagunça para o êxito da articulação entre a palhaçada no palco e a alegre balbúrdia na plateia.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho