Enfim, uma escritora malvada

Os contos de Mariella Augusta são sobre vidas miúdas, andarilhas, sem chance contra o destino miserável, envoltos num humor malvado e inteligente
Mariella Augusta, autora de “Suíte”
01/11/2024

Às vezes, no meio dos muitos livros que chegam diariamente à minha casa, sem o release das editoras mais poderosas, sem o aval de críticos conhecidos, ou de resenhas nos jornais de grande circulação, em edições mais ou menos amadoras, com capas severamente maltratadas por aplicativos genéricos de design, encontro pequenas joias.

Tal é o caso de Suíte, no qual a capa mal se enxerga, o título é um tanto genérico, e, no entanto, reúne um conjunto admirável de vinte contos assinados por Mariella Augusta. No caso, a forma como esse livro me chegou às mãos não foi tão às cegas assim, pois eu já conhecia Mariella, com outro sobrenome, desde a sua defesa do doutorado na USP sobre a heteronímia pessoana, na qual ela dava um tratamento retórico original à questão demasiado batida.

Isso apenas para dizer que eu já tinha uma imagem bastante positiva de Mariella, mas não tinha a menor ideia de que ela escrevia literatura, o que, de resto, não me parecia um bom sinal, pois são raros os acadêmicos competentes que produzem obras literárias de igual valor. Abri o livro, entretanto, e não demorei a ficar bem impressionado, tanto com a qualidade dos contos, como com a variedade de registros e universos que apresentavam.

Repasso em seguida alguns dos contos de que mais gostei, a começar do primeiro, Língua, que faz com que as frases do português se embaralhem no tateio de um registro cosmológico-místico análogo ao da proliferação de línguas babélicas depois da Queda. A prosa alegórica e abstrata, cheia de metáforas incongruentes, não facilita a entrada do leitor casual no livro, e não dá ideia da diversidade que mencionei, na qual vários dos contos são de leitura mais fácil, ligados a um universo urbano, geralmente de classe média baixa. Faltou aí a mão experimentada de um editor que colocasse o belo texto um pouco mais à frente, ou mesmo — meu palpite — fechando o livro. Outro palpite: retirar os contos mais curtos. Dar mais fôlego à ideia.

O conto seguinte, South american way, é muito mais palatável a uma primeira leitura e exibe o humor malvado e inteligente que percorre todo o livro. O narrador de primeira pessoa é um escritor gay, desempregado e cocainômano, que vive às custas do irmão mais velho, o qual, para seu azar, se tornou menos disposto a sustentá-lo depois que se casou com uma “desgracinha” e formou família própria. Como recurso de sobrevivência, o escritor pensa em se adaptar aos novos tempos, abandonar o conto anacrônico, e ganhar dinheiro com roteiros de “audiovisual”.

O núcleo, portanto, desse conto hilário são os seus ensaios no novo gênero, que permitem evidenciar também um trunfo de todo o livro: as sentenças e máximas irônicas que o narrador despeja a torto e a direito, como patadas nos lugares-comuns edificantes, seja do esquerdismo woke ou da boçalidade fascistoide. Alguns exemplos: “Deus abençoe a culpa”; “A diferença do mau gosto do pobre para o mau gosto do rico é que o rico faz mais esforço”; “Um filme ruim ninguém esquece”; “Fazia tempo que ser ator não tinha mais nada a ver com atuar”; “Viado que ama é viado bem de vida”; “Bicha pobre não ama. Bicha desempregada só trepa mesmo”; “No Brasil, até crente é macumbeiro”; “O negócio era mais chato do que o naturalismo”; “Não queria militar por nada deste mundo. Não gostava de conversar com estranhos”. Não há muita opção: ou se lê gargalhando, ou se aponta o indicador ideológico e moralista.

Outro conto ótimo é Família disfuncional, que eu aproximaria de dois outros que, em princípio, poderiam ser considerados muito diferentes, Canção do velho mundo e Uma justiça especial. Os três, entretanto, têm como base da invenção o pastiche ou imitação irônica de um estilo linguístico ou literário bem definido. No caso de Família…, imita-se uma fábula indígena, mas não de criação do sol e da lua, como soía esperar, mas de ciúmes e vingança entre amigos que os fados determinaram que se destruíssem mutuamente.

Em Canção…, Mariella recua bastante no tempo e emula tanto a langue d’oc das cantigas de amor dialogadas como os cantares bíblicos num texto poético-erótico em que a crueldade e a morte parecem ser a consequência mais exata da paixão: quem ama, claro que mata. Em termos de assunto, portanto, se assemelha menos aos cantares do que ao erotismo sádico e litúrgico de Yukio Mishima.

Em Uma justiça…, Mariella emula, com surpreendente desembaraço, a linguagem marginal da periferia tendo como centro da ação um tribunal do crime. Ali são mutilados primeiro um menino que roubou na área, depois um rapaz de 19 anos acusado de delação. Enquanto o primeiro perde o polegar, extraído com uma lâmina cega a fim de garantir a tortura e a dor, o segundo é espancado a pauladas e depois esquartejado vivo. Não é apenas o horror verossímil que admira no conto, mas uma peripécia manifesta não na ação, mas nos afetos: na medida em que vai tendo o corpo mutilado, o ódio do rapaz se expande a ponto de não conceder à dor o gosto da sujeição. Como se o ódio — o puro ódio — contivesse uma transcendência intocável pela carnificina.

Destacaria ainda mais três contos, todos eles tocantes, até melodramáticos, a despeito de temperados pela ironia ou pelo nonsense da narração. O primeiro deles é Um dia de praia, no qual a irmã mais velha leva o irmãozinho a uma espécie de último passeio na praia. Pouco a pouco, como quem não quer nada, o conto vai evidenciando o desamparo absurdo das crianças em meio a um mundo quase encantado, mas onde a narração pode ser outra face da maldade.

Em Troika, Mariella adota a perspectiva popular de um “causo”, um relato interiorano e pitoresco, no qual dois irmãos tentam levar, sobre uma mula, o caixão com o corpo da irmã morta até o cemitério para ser benzido pelo padre. Contudo, o corpo cai numa encosta do caminho e a bênção recai sobre o caixão vazio. Mais tarde, quando enterram o corpo da irmã, plantam sobre ele um ipê para demarcar o terreno. Nem por isso a morta se encontra a salvo da dispersão, cercada como está por incêndios criminosos. A natureza está tão perdida para a salvação da alma como a igreja.

Achadas e perdidas tem um registro que igualmente conjuga humor, crueldade e melancolia, mas desta vez emulando um contos de fadas: duas amigas da faculdade, de classes distintas, têm os fios dos destinos embaralhados de modo aleatório e indiferente: a rica arruína o próprio pai e se prostitui; a pobre casa, perde o marido e sobrevive às custas de legendar curtas metragens. Mais maldade com o culturetismo impossível. A ligar o destino dessas duas, suicida-se uma terceira amiga, prostituta, bêbada e moralista, filha de uma pastora evangélica. Nessas alturas, Deus não obrava sobre nenhuma delas.

São contos sobre vidas miúdas, andarilhas, sem chance contra o destino miserável (“Seus joelhos são aristotélicos, mas você é um porco.”). Mariella as observa se debaterem enquanto se afogam, num mundo fechado e cafona como um aquário.

Suíte
Mariella Augusta
Faria e Silva
176 págs.
Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

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