Conversa, escuta, o nome desta coluna, apareceu naturalmente quando Rogério Pereira me convidou para escrever no Rascunho. Ao topar, pensei então que não queria fazer mais do que isso: conversar sobre crítica e literatura com eventuais leitores. O nome prosaico, percebo agora, acabou fazendo um curioso contraponto à maneira atual de pensar a crítica literária, que toma ares cada vez mais desesperados.
É óbvio que as incertezas sobre o valor da crítica e do trabalho literário sempre existiram, em algum nível, mas também me parece óbvio que aumentaram muito nos últimos anos, e não de maneira criativa ou perspicaz. Se me permitem uma nota de lembrança pessoal — nada nostálgica, aliás —, no meu tempo de graduação, mesmo vivendo em plena violência da ditadura Medici, quando por vezes desapareciam colegas de classe ou conhecidos da faculdade e depois ficávamos sabendo que estavam presos ou até baleados, a ideia de relevância da literatura ou da crítica raramente era posta em questão. Ainda mais porque a crítica literária não era pensada isoladamente do cultivo do pensamento crítico em relação a tudo, vale dizer, à política, à sociedade, à cultura, à arte e a si mesmo. A ideia de crítica era, sem exagero, um pressuposto da vida inteligente. Era o exercício palpável de uma forma de vida oposta ao que era sentido como ameaça imediata: a voracidade venal dos empresários e a tara de torturar e matar dos militaristas.
Hoje, me espanta constatar, os estudantes de Letras vivem um momento essencialmente mais traumático do que aquele da ditadura — ao menos no tocante a sua segurança sobre a futura profissão de críticos e de professores. Perderam a certeza que tínhamos de nossa importância social e civilizatória. E pensando bem, qual o espanto? Afinal, ainda no estágio inicial de formação intelectual e profissional, estão vivendo num ambiente público inteiramente degradado, sob ameaça constante de golpismos. Os 7/9, o passado e o próximo, estão aí mesmo para assistirmos a exibições obscenas de boçalidade patriótica.
No panteão sempre duvidoso de heróis nacionais, desta vez, superaram-se. A cada dia, condecoram-se novas figuras bizarras, histriônicas, bregas a ponto de dar inveja ao Falcão, muitas delas ostentando epítetos de players e brokers, ou de pastores e empresários, pois, nesse estranho mundo às avessas, tudo parece que vem a dar no mesmo. Não é claro, porém, o que empreendem essas figuras caricatas, donos de fortunas repentinas e de origem obscura. Já o termo “trabalho” raramente consta de seu cartão de visita folheado a minério de grilagem e invasão de terras indígenas. E se são tais os heróis da república, quem serão os bandidos, senão professores, cientistas e trabalhadores sérios em qualquer atividade?
Ainda em formação, os jovens veem essas figuras eticamente e tecnicamente desqualificadas serem chamadas a ocupar ministérios chaves, que deveriam tratar da educação, cultura e direitos humanos, e entrar lá com a missão estrita de desmontar o que mal havia sido construído, a duras penas, com sacrifícios de muitos. “Passar a boiada” é o novo poema-bandeira pós-Oiticica; “vida de gado” deixou de ser refrão irônico do Zé Ramalho para tornar-se programa certificado pelo agro-ogro.
Como supor que os mais jovens estejam dispostos a entrar para o serviço público, quando os predadores começam o desmonte justamente pela exoneração dos funcionários mais capazes no exercício de suas funções? Qual o horizonte final da barbárie brasileira atual? As eleições de outubro darão cabo dela? Escarmentado, suspeito que levará muito tempo até que o mar lave essa montanha de misérias que os jovens, hoje, conhecem cedo demais.
Um submundo reles, anticultural, veio à tona. Apedeutas são dominantes nas redes sociais e as ocupam com um à vontade digno de clowns profissionais. Parece que as redes nasceram para eles e vice-versa: vestir-se de periquito, multiplicar delírios em Miami, figurar armas com os dedos contra as cabeças de quem tem cabeça —haja disposição dionisíaca para viver tanta realidade!
E não esquecer que o delírio está alavancado em favor do contrabando de armas reais, acumuladas descontroladamente nas mãos dessa nova categoria exemplar de “cidadãos do bem”, os “caçadores, atiradores e colecionadores”, e os “milicianos”, que não foram explicitados nela. Quando os abilolados começarão a entrar nos campi, pois em todos os outros lugares já estão? Quando se sentirão convocados a apontar para os professores os seus instrumentos de persuasão extra-técnica a fim de dar cabo de argumentos discursivos?
Diante de tal realidade, que fazer? Tatear os signos ainda ininteligíveis de uma “esperança radical”, sem sustentação em qualquer circunstância conhecida, a qual, entretanto, possibilite agir defensivamente num tempo de devastação cultural? Assim talvez resguardar a estrutura mental e os valores sem os quais já não seríamos capazes de nos reconhecer? Essa é a alternativa apresentada por Jonathan Lear, professor de filosofia da Universidade de Chicago, no seu belo Radical hope — ethics in the face of cultural devastation (Cambridge, Harvard University Press, 2006), tendo como modelo a ação extraordinária de Plenty Coups, chefe indígena da nação Crow, que teve surpreendente êxito em salvá-la do genocídio anunciado.
Ou a alternativa certa estaria, na direção contrária, em livrar-se de todo restinho de esperança a fim de livrar-se também do medo que ela implica? É o proposto no célebre dictum estoico, que parece talhado para a miséria do presente: nec spe, nec metu. Pode não soar muito animador, mas li em algum lugar que Cícero o aplicou no sentido positivo de valorização da ação contra o temor paralisante das expectativas no pior cenário possível, quando a própria lei e o estado deixam de ser inteligíveis.
Seja como for, hoje, qualquer tema de conversa sempre gira em torno do damage control. E é justamente como estratégia de contenção do desespero que, para mim, faz sentido reafirmar a relevância da conversa e da crítica, em literatura como em tudo o mais. Estar aberto à conversa sempre implica em se mover na contramão da violência. Além disso, construir argumentos críticos, ler o que for possível, estudar — nada disso se opõe à ação, antes, a qualifica. Dá qualidade até ao sofrimento, quando for inelutável sofrer.
Nada disso é novo, claro. A ideia do argumento como recurso contra a violência está lá nos prolegômenos da apologia da Retórica por Aristóteles. E ainda no início do período moderno, Baldesar Castiglione, no seu célebre Libro del Cortegiano, afirmava que, na vida civil e intelectual, fora da violência das campanhas militares, só contribui verdadeiramente a gente que manifesta alguma discordância. Para ele, repetir o que já fora dito não podia ser verdadeiro, nem aprazível, pois desvalorizava a companhia da gente com quem se estava, desistia da graça do diálogo, base do convívio pacífico, seja colaborativo ou confrontacional.
Onde se precisaria mais de conversa e crítica do que no Brasil da canga e do cangalho?