Em nome do nome

Em um Brasil afeito à barbárie, estar aberto à conversa sempre implica em se mover na contramão da violência
Ilustração: Tereza Yamashita
02/08/2022

Conversa, escuta, o nome desta coluna, apareceu naturalmente quando Rogério Pereira me convidou para escrever no Rascunho. Ao topar, pensei então que não queria fazer mais do que isso: conversar sobre crítica e literatura com eventuais leitores. O nome prosaico, percebo agora, acabou fazendo um curioso contraponto à maneira atual de pensar a crítica literária, que toma ares cada vez mais desesperados.

É óbvio que as incertezas sobre o valor da crítica e do trabalho literário sempre existiram, em algum nível, mas também me parece óbvio que aumentaram muito nos últimos anos, e não de maneira criativa ou perspicaz. Se me permitem uma nota de lembrança pessoal — nada nostálgica, aliás —, no meu tempo de graduação, mesmo vivendo em plena violência da ditadura Medici, quando por vezes desapareciam colegas de classe ou conhecidos da faculdade e depois ficávamos sabendo que estavam presos ou até baleados, a ideia de relevância da literatura ou da crítica raramente era posta em questão. Ainda mais porque a crítica literária não era pensada isoladamente do cultivo do pensamento crítico em relação a tudo, vale dizer, à política, à sociedade, à cultura, à arte e a si mesmo. A ideia de crítica era, sem exagero, um pressuposto da vida inteligente. Era o exercício palpável de uma forma de vida oposta ao que era sentido como ameaça imediata: a voracidade venal dos empresários e a tara de torturar e matar dos militaristas.

Hoje, me espanta constatar, os estudantes de Letras vivem um momento essencialmente mais traumático do que aquele da ditadura — ao menos no tocante a sua segurança sobre a futura profissão de críticos e de professores. Perderam a certeza que tínhamos de nossa importância social e civilizatória. E pensando bem, qual o espanto? Afinal, ainda no estágio inicial de formação intelectual e profissional, estão vivendo num ambiente público inteiramente degradado, sob ameaça constante de golpismos. Os 7/9, o passado e o próximo, estão aí mesmo para assistirmos a exibições obscenas de boçalidade patriótica.

No panteão sempre duvidoso de heróis nacionais, desta vez, superaram-se. A cada dia, condecoram-se novas figuras bizarras, histriônicas, bregas a ponto de dar inveja ao Falcão, muitas delas ostentando epítetos de players e brokers, ou de pastores e empresários, pois, nesse estranho mundo às avessas, tudo parece que vem a dar no mesmo. Não é claro, porém, o que empreendem essas figuras caricatas, donos de fortunas repentinas e de origem obscura. Já o termo “trabalho” raramente consta de seu cartão de visita folheado a minério de grilagem e invasão de terras indígenas. E se são tais os heróis da república, quem serão os bandidos, senão professores, cientistas e trabalhadores sérios em qualquer atividade?

Ainda em formação, os jovens veem essas figuras eticamente e tecnicamente desqualificadas serem chamadas a ocupar ministérios chaves, que deveriam tratar da educação, cultura e direitos humanos, e entrar lá com a missão estrita de desmontar o que mal havia sido construído, a duras penas, com sacrifícios de muitos. “Passar a boiada” é o novo poema-bandeira pós-Oiticica; “vida de gado” deixou de ser refrão irônico do Zé Ramalho para tornar-se programa certificado pelo agro-ogro.

Como supor que os mais jovens estejam dispostos a entrar para o serviço público, quando os predadores começam o desmonte justamente pela exoneração dos funcionários mais capazes no exercício de suas funções? Qual o horizonte final da barbárie brasileira atual? As eleições de outubro darão cabo dela? Escarmentado, suspeito que levará muito tempo até que o mar lave essa montanha de misérias que os jovens, hoje, conhecem cedo demais.

Um submundo reles, anticultural, veio à tona. Apedeutas são dominantes nas redes sociais e as ocupam com um à vontade digno de clowns profissionais. Parece que as redes nasceram para eles e vice-versa: vestir-se de periquito, multiplicar delírios em Miami, figurar armas com os dedos contra as cabeças de quem tem cabeça —haja disposição dionisíaca para viver tanta realidade!

E não esquecer que o delírio está alavancado em favor do contrabando de armas reais, acumuladas descontroladamente nas mãos dessa nova categoria exemplar de “cidadãos do bem”, os “caçadores, atiradores e colecionadores”, e os “milicianos”, que não foram explicitados nela. Quando os abilolados começarão a entrar nos campi, pois em todos os outros lugares já estão? Quando se sentirão convocados a apontar para os professores os seus instrumentos de persuasão extra-técnica a fim de dar cabo de argumentos discursivos?

Diante de tal realidade, que fazer? Tatear os signos ainda ininteligíveis de uma “esperança radical”, sem sustentação em qualquer circunstância conhecida, a qual, entretanto, possibilite agir defensivamente num tempo de devastação cultural? Assim talvez resguardar a estrutura mental e os valores sem os quais já não seríamos capazes de nos reconhecer? Essa é a alternativa apresentada por Jonathan Lear, professor de filosofia da Universidade de Chicago, no seu belo Radical hope ethics in the face of cultural devastation (Cambridge, Harvard University Press, 2006), tendo como modelo a ação extraordinária de Plenty Coups, chefe indígena da nação Crow, que teve surpreendente êxito em salvá-la do genocídio anunciado.

Ou a alternativa certa estaria, na direção contrária, em livrar-se de todo restinho de esperança a fim de livrar-se também do medo que ela implica? É o proposto no célebre dictum estoico, que parece talhado para a miséria do presente: nec spe, nec metu. Pode não soar muito animador, mas li em algum lugar que Cícero o aplicou no sentido positivo de valorização da ação contra o temor paralisante das expectativas no pior cenário possível, quando a própria lei e o estado deixam de ser inteligíveis.

Seja como for, hoje, qualquer tema de conversa sempre gira em torno do damage control. E é justamente como estratégia de contenção do desespero que, para mim, faz sentido reafirmar a relevância da conversa e da crítica, em literatura como em tudo o mais. Estar aberto à conversa sempre implica em se mover na contramão da violência. Além disso, construir argumentos críticos, ler o que for possível, estudar nada disso se opõe à ação, antes, a qualifica. Dá qualidade até ao sofrimento, quando for inelutável sofrer.

Nada disso é novo, claro. A ideia do argumento como recurso contra a violência está lá nos prolegômenos da apologia da Retórica por Aristóteles. E ainda no início do período moderno, Baldesar Castiglione, no seu célebre Libro del Cortegiano, afirmava que, na vida civil e intelectual, fora da violência das campanhas militares, só contribui verdadeiramente a gente que manifesta alguma discordância. Para ele, repetir o que já fora dito não podia ser verdadeiro, nem aprazível, pois desvalorizava a companhia da gente com quem se estava, desistia da graça do diálogo, base do convívio pacífico, seja colaborativo ou confrontacional.

Onde se precisaria mais de conversa e crítica do que no Brasil da canga e do cangalho?

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho