Boris Groys em Coimbra (2)

Para o filósofo russo, subjetividades só se tornam relevantes quando se redefinem contra as imagens já feitas pela sociedade, pela burocracia, pelo status quo
Boris Groys por Dê Almeida
01/06/2023

Nesta coluna, finalizo a apresentação de Philosophical conversations – Towards self-design, de Boris Groys, filósofo e crítico de arte russo, que inaugurou, em 2023, a Coleção Humanidades da Imprensa da Universidade de Coimbra.

Como deixa ver o título, este novo livro de Groys trata sobretudo da noção de self-design [autodesignação], que ele entende em oposição direta à crença de que as subjetividades individuais dos artistas ou filósofos são naturalmente interessantes. Para ele, subjetividades só se tornam relevantes quando se redefinem contra as imagens já feitas pela sociedade, pela burocracia, o status quo etc. O que também implica dizer que o self-design apenas tem início quando o artista postula um novo começo para si, distinto daquele já dado pelo nascimento cívico ou pelo grupo social.

Nesses termos, a ação de self-design é muito diferente da que é concebida por uma perspectiva liberal que parte da ideia de origem e fixa a identidade a partir daí, inscrevendo-a num sistema pré-estabelecido. Para Groys, começar da origem dada é sempre começar tarde demais e estar condenado a ser “pós” alguma coisa. Na contramão da adesão à origem, a noção de self-design tem como exigência incontornável a disputa imagética travada exclusivamente dentro do legado cultural que constitui o campo artístico ou filosófico, o que nada tem a ver com a crença íntima de encontrar algo novo ou original dentro de si.

Esse ponto da disputa de imagens no campo da cultura leva a outro, fundamental para Groys: a exigência de autodesignação é, a rigor, imaginária, uma vez que arte e filosofia são jogos de linguagem com regras próprias, dos quais ninguém está obrigado a participar: trata-se de um tipo de jogo cultural que se trava entre pessoas que não estão absolutamente obrigadas a jogá-lo.

Como as exigências são imaginárias e dizem respeito à busca artificial — isto é, mediante a arte —, de um valor duradouro, ou “imortal”, outra maneira de definir o self-design é pensá-lo como efeito de uma política consciente para lidar com os mortos. Isto é, pensá-lo como um jogo “espectral” que obriga o artista/ filósofo a entrar em contato com os mais destacados autores do seu campo — o que inclui, em primeiro lugar, os autores já mortos que se tornaram decisivos dentro dele. Vale dizer, os artistas/ filósofos que desejam gravar a sua imagem no campo da cultura estão obrigados a se posicionar tão bem nele como o fizeram os mortos que se tornaram imortais.

E se é certo que a imortalidade adquirida pelos mortos em suas obras, imagens, teorias, linguagens etc. impede a exclusão deles do espaço simbólico da arte ou da filosofia, uma operação eficaz de self-design está obrigada, por assim dizer, a adotar o ponto de vista dos mortos. O que, uma vez mais, repõe a ideia-chave de Groys de que a atividade artística, assim como a filosófica, orienta-se pela universalidade do fim, não pela particularidade da origem.

Ao insistir, porém, na questão da universalidade, Groys entra destemidamente em terreno minado e critica as reivindicações liberais operadas em termos de oposições que não consideram a base produtiva e material da sociedade. Isto porque, segundo diz, elas tenderiam à substituição de uma “solidariedade horizontal” entre os pobres por uma “solidariedade vertical” entre membros de quaisquer grupos considerados minoritários no âmbito de uma sociedade desigual. E quando essa substituição se efetua, ocupar uma posição dominante dentro do sistema de classes é indiferente e até admirável — como seria o caso, por exemplo, de uma mulher que conseguisse ocupar um cargo de CEO de uma empresa que participa do processo de acumulação de riqueza para os ricos. Ou seja, o processo de identificação verticalizada, entre membros de grupos minoritários, longe de ser revolucionário, apenas desmaterializaria as relações de classe, como qualquer outra operação do pragmatismo capitalista.

E se Groys critica as formulações identitárias onipresentes nos estudos contemporâneos, é igualmente crítico de vertentes do pensamento ecológico, em que, nas suas palavras, o “Antropoceno funciona como Satã, na última etapa antes do Apocalipse”. Para ele, esse tipo de discurso é sobretudo efeito de períodos de abundância e paz em que o perigo é projetado literalmente no lixo, e não nos arsenais nucleares e nos confrontos militares que são ainda a questão crucial de nossos dias.

A propósito, registro que, nas conversações deste livro, ocorridas antes de eclodir a atual guerra da Ucrânia, Groys já a dava por certa, assim como o seu alastramento. Dá pena que a publicação do livro não tenha saído antes para que ele pudesse ter recebido o mérito da acuidade de sua análise.

Enfim, a partir dessa maneira dura de lidar com alguns dos consensos atuais mais abrangentes das áreas de Humanidades, evidencia-se também o tipo de estratégia reflexiva aplicada por Groys às grandes questões contemporâneas: ele desqualifica os pressupostos edificantes do liberalismo associados à defesa de comunidades restritas ou “bolhas” da internet, e agrava os conflitos materiais e de classe que permanecem decisivos em termos globais.

Na mesma direção antiliberal, mas também antipopulista, Groys discorda da aplicação indeterminada de termos como “fascista” ou “nazista” aos atuais governos de ultradireita, assim como aos movimentos de massa anti-imigrantistas, pois lhes faltaria um projeto de expansão territorial imperialista — aspecto que estaria no cerne desse tipo de ideologia. Para ele, não passam de governos e movimentos conservadores, reacionários, depressivos e defensivos, que se enxergam como losers numa batalha contra a elite globalizada.

Sendo assim, para Groys, não haveria sequer como tomar partido entre as duas facções dominantes nos dias de hoje sem perder integridade intelectual: como escolher entre o nacionalismo reacionário e a ação de rapina da elite global endinheirada, vulgarmente conhecida como “mercado”? Ainda mais porque, no fundo, são aos próprios magnatas do mercado que os ultranacionalistas apelam, cobrando apenas para que tomem conta deles, enquanto trucidam os demais. De minha parte, aliás, acrescentaria um “vice-versa”: o mercado é quem mais incentiva a patriotada farsesca, a fim de passar a boiada sobre leis e ações dos setores mais críticos ao liberalismo.

Outro aspecto característico da posição de Groys é que, para ele, não há mecanismo político mais opressivo do que o do horizonte nostálgico da pequena comunidade, onde a partilha de valores é obrigatória. Lembro-me de um antigo texto seu no qual ele diz que não há nada mais parecido entre si do que as danças folclóricas dos mais longínquos rincões do planeta. E vai sem dizer que, para ele, a solidariedade das comunidades não tem qualquer eficácia contra o capitalismo internacional, ação que demandaria a mobilização de instituições políticas de escala mundial.

Não são posições simpáticas nos dias que correm.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho