Boris Groys em Coimbra (1)

Para o filósofo russo, o artista está obrigado a se “autocriar” a fim de escapar da descrição usual feita a seu respeito pelos outros
O russo Boris Groys, autor de Philosophical conversations — Towards self-design
01/05/2023

Para quem se interessa por crítica de arte contemporânea, sugiro conferir Philosophical conversations — Towards self-design, do filósofo russo Boris Groys, livro que inaugura a Coleção Humanidades da Imprensa da Universidade de Coimbra, neste ano de 2023.

A sugestão se justifica já porque Groys pensa pela própria cabeça, o que está longe de ser trivial; depois, porque ao falar de arte, que é o que mais me interessa no seu pensamento, não é filósofo que se deixe levar por lugares enlevados. É o que basta para distingui-lo da maioria dos filósofos contemporâneos que conheço, alguns excelentes em sua área, mas que, ao acercar-se da arte — em geral no intuito de ilustrar algum pensamento, ou de alcançar um registo solene para as suas perorações —, dizem coisas singelas e edulcoradas a respeito dela. O que Thomas Bernhardt, em Mestres antigos, revela sobre o ridículo em Heidegger aplica-se a muito discurso filosófico sobre arte. Não, porém, ao de Groys, que, talvez por conhecer o ambiente artístico e os artistas, sabe bem que fórmulas edificantes e consoladoras nada dizem sobre arte.

Este novo livro é composto de seis entrevistas concedidas por Groys a Catarina Pombo Nabais, professora do Departamento de História e Filosofia da Ciência da Universidade de Lisboa, cuja formação de matriz francesa é muito distante da de Groys, aspecto que tornou a conversa até mais divertida, com o filósofo raramente acatando os pressupostos das perguntas feitas.

Para dar logo uma visão estrutural do pensamento de Groys, diria que ele tem um entendimento da filosofia que a aproxima bastante da arte, ao passo que a afasta das ciências — e mesmo das ciências humanas. A principal justificativa para ambos os movimentos é a de que, para ele, arte e filosofia tratam de questões transcendentais, isto é, que não admitem solução, o que, por sua vez, também o leva a dissolver a ideia de filosofia como produção conceitual.

Se Groys é duro com a filosofia tradicional, é ainda mais contundente ao tratar de modas de “meditação”, que pretendem passar autoajuda e Mindfulness por filosofia, introduzindo nos conceitos uma espécie de centro energético de irradiação mística. Essa energética espiritualizante, observa, é especialmente favorecida pelo ambiente da internet — por exemplo, com a decantada “infinitude” da Inteligência Artificial, atualmente amplificada com o sucesso do ChatGPT e outras novidades tecnológicas. Para Groys, contudo, a alegada infinitude não passa de autonomização fake de softwares a mascarar a materialidade bem finita dos hardwares e de seus componentes, tudo devidamente precificado e operado em função do lucro dos seus proprietários.

De minha parte, quando li o descaso de Groys com os empreendimentos neo-espirituais, senti muita pena de ele não ter vindo ao Brasil nos últimos quatro anos, para comentar o chorrilho de asnices pseudomísticas perpetradas pelas figuras esdrúxulas do último governo — felizmente derrotado agora e quiçá para sempre! —, o que incluiu desde a imitação brega de um discurso de Goebbels, ao som da ópera Lohengrin, pelo secretário nacional da Cultura, até uma primeira-dama a saltitar infantilmente e a “falar em línguas”, passando pelos delírios sexuais perversos de uma ministra-pastora que fez dos direitos humanos um esconjuro fetichista. Haja espiritualidade fake como unidade de bandidagem real!

Contudo, o assunto a que Groys mais se aplica no presente livro diz respeito à noção de self-design, que refere o controle da imagem que o artista ou filósofo buscam para si. Para ele, o artista ou pensador estão obrigados a se “autocriar” a fim de escapar da descrição usual feita pelo Estado, pela burocracia, ou simplesmente pelos outros a seu respeito. Nesse processo difícil, necessariamente confrontacional, o artista/pensador pode até tomar a imagem já feita dele e trabalhar sobre ela como um ready made, cuja significação modifica aquela da imagem primeira, mas não pode abdicar da tarefa de “redesignar” a si mesmo, pois isso equivaleria a adotar como própria a imagem já fornecida pelos demais e submergir na banalidade.

A noção de self-design, entretanto, não é liberal, e não se aplica, por exemplo, ao self-made man, vale dizer, ao emergente orgulhoso de sua trajetória, pois a ação deste se circunscreve à busca do sucesso pessoal, enquanto o self-design refere o poder político, cultural e intelectual que se pode ter sobre a própria imagem — por exemplo, o poder que um artista obtém quando compõe uma obra que, desde então, baliza o que quer que digam de si.

Uma empreitada dessas pode implicar em gestos muito diferentes do artista/pensador: por exemplo, na dispensa de que as pessoas o amem ou ao seu trabalho. Para Groys, aliás, o desejo de ser amado não costuma ser uma estratégia eficaz para encontrar um lugar destacado no campo artístico, pois a lembrança mais funda, a impressão mais forte sempre vem daquilo que desagrada ou contraria. Assim, ser capaz de desgostar abriria maiores possibilidades de autocriação para o artista.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

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