As obras de B. Traven (1)

Livros do enigmático autor revolucionário e aventureiro começam a ganhar tradução diretamente do alemão
B. Traven, autor de “O navio da morte”
01/07/2024

Quando, ao lado de meu querido amigo Celso Queiroz, me dispus a dirigir uma coleção de livros de narrativas marcantes e de leitura saborosa, a ser editadas pelo selo literário Quimera, o primeiro nome que me veio em mente, sem hesitação alguma, foi o de B. Traven. O navio da morte foi uma das leituras mais inesquecíveis de minha vida: uma daquelas que revelam que um livro pode levá-lo a certas viagens psíquicas das quais não se volta o mesmo. Celso tinha a mesma impressão e, pronto, foi justamente esse título que escolhemos para dar largada à coleção.

A lembrança do nome de B. Traven, porém, não se deu apenas por conta desse livro. Ele absolutamente não é autor de one hit wonder, mas um escritor prolífico, com várias obras extraordinárias. Vou repassar aqui brevemente o conjunto mais relevante dessas obras, que tanto mais pode interessar ao leitor brasileiro porque quase nada dele chegou a ser editado no país, e o que chegou a sê-lo sequer foi tradução direta da língua original.

Explico-me.

Há inúmeras controvérsias a respeito das obras de B. Traven. Tanto as que colocam em dúvida a identidade do autor, como ainda a própria língua e a forma final dos seus textos. Isto porque, a despeito de os originais serem certificadamente alemães e de quase todos os livros de Traven terem sido editados em alemão, nas décadas de 1920 e 1930, muito antes das demais línguas, há mudanças importantes nas edições norte-americanas dos livros, que ele mesmo assume como sendo de lavra própria, embora se saiba que se devem a intervenções imensas do seu editor americano, Bernard Smith.

O caso teria se passado assim: Traven enviou para a editora Alfred Knopf, de Nova Yorque, já nos anos 1930, as traduções que ele próprio fez para a língua inglesa dos originais alemães de O navio condenado, O tesouro de Sierra Madre e A ponte da selva — os três já tendo sido publicados na Alemanha na década anterior. O editor americano gostou dos livros, mas considerou que as traduções não estavam suficientemente boas, devendo receber um novo tratamento por um falante nativo. No caso, a editora destacou Bernard Smith para fazer esse trabalho.

Jonah Ruskin, um dos principais biógrafos de Traven, a despeito de ser detestado pelos atuais herdeiros da sua obra, explica o caso assim:

Smith sentiu que eles eram impublicáveis daquela forma, mas uma vez que havia claro interesse em ficção proletária, e uma vez que os livros de Traven eram, nas palavras de Smith, “verdadeiramente proletários”, ele fez um acordo com Traven no qual “tratou”, como ele o chamou, cerca de um quarto do material. Traven gostou do trabalho de Smith. Ele sentiu que Smith respeitou seu estilo, maneira, e especialmente suas ideias. Acima de tudo, nos primórdios dos anos trinta, Traven estava ansioso para alcançar leitores da classe trabalhadora norte-americana.

O resultado foi que Traven permitiu que Smith prosseguisse com o seu “tratamento” das traduções para o conjunto dos livros, de que resultaram livros bem maiores do que os originais alemães, com partes suprimidas e várias outras acrescentadas. A questão filológica trazida por essas intervenções, admitidas pelo autor, é muito interessante, pois radicaliza o tipo de “traição” inevitável em toda tradução, promovendo mesmo uma verdadeira adaptação do livro para o público americano. E daí que, a partir dessa adaptação, aconteceu o inevitável, segundo a própria lógica da mercadoria, embora Traven não parecesse demonstrar contrariedade por isso: as versões americanas ganharam muito maior publicidade do que as antigas edições alemãs dos originais de Traven.

Isso se agravou, ou intensificou ainda mais após o sucesso da adaptação hollywoodiana de O tesouro de Sierra Madre, dirigido por John Huston e estrelado por Humphrey Bogart, que recebeu três Oscar. Desde então, não poucas edições internacionais, incluindo as brasileiras, com a admirável exceção de três versões dos anos 1940, hoje bastante difíceis de encontrar, foram traduzidas do que diziam ser “o original norte-americano”. B. Traven passou a ser considerado então como um dos grandes representantes da literatura norte-americana moderna.

A edição do selo literário Quimera busca reparar esse desvio e os tantos enganos que acarretou, retomando a tradução direta do original alemão. É possível dizer que, como ocorreu com Kafka e tantos outros autores, traduzidos da tradução durante muitos anos, finalmente agora o público brasileiro pode ler uma tradução dele que lida a sério com as dificuldades oferecidas diretamente pelo alemão, e não pelo inglês, nem pelas intervenções de Bernard Smith que visavam basicamente atingir o público daquele país. Se é verdade que Traven aceitou as condições do editor americano para editá-lo com todas as adaptações de Smith, também é verdade que não há a menor razão para que elas também sejam aceitas pelo público fora dos Estados Unidos, quanto mais pelo sul-americano e brasileiro, cujas condições de leitura e de existência são muito diversas, a despeito da progressiva americanização do mundo.

Não bastasse essa confusão em relação aos originais de Traven, outras interferências e mudanças continuaram a ser feitas na sua obra depois de sua morte, e, portanto, desta vez, sem que o seu consentimento possa ser provado fora da admissão de teorias espíritas. O biógrafo citado anteriormente, o norte-americano Jonah Ruskin, confessa — quase inacreditavelmente! — ter feito ele próprio mudanças em certos contos, supostamente sob o incentivo e em conjunto com a viúva de B. Traven, Rosa Elena Luján, que se tornou também a herdeira de todo o seu espólio, hoje em mãos de uma de suas filhas.

Feitos esses esclarecimentos, pode ser interessante saber que, na ordem que o próprio Traven propôs, em 1952, para uma publicação sequencial do conjunto de suas obras, o pontapé inicial caberia sempre a O navio da morte. O conjunto completo proposto por ele, de modo geral, obedeceria ao plano que especifico a seguir, aqui, e em algumas colunas próximas.

1. O navio da morte
Trata-se do relato irônico de um marinheiro que, privado de seu passaporte, também perde a cidadania. Gerard Gales é o herói dessa epopeia dos proletários do mar que confronta as necessidades humanas com a burocracia nacional e internacional, no pós-Primeira Guerra Mundial. Foi publicado pela primeira vez em alemão como Das Totenschiff. Die Geschichte eines amerikanischen Seemanns, em Berlim, por Büchergilde Gutenberg, em 1926. A primeira edição em espanhol apareceu em 1931, em Madri, e em inglês apenas em 1934. Além da tradução mais recente editada pelo selo literário Quimera, de autoria de Érica Gonçalves Ignacio de Castro, existem duas outras traduções brasileiras: O barco dos mortos, traduzido do alemão por Humberto A. PH. Schoenfeldt e Gustavo Nonnenberg (São Paulo: Assumção, 1945), e O barco da morte: a história de um marinheiro americano, traduzido do inglês, por Fernando de Castro Ferro (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964).

[Continua na próxima edição]

O navio da morte
B. Traven
Trad.: Érica Gonçalves Ignacio de Castro
Quimera
322 págs.
Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

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