No âmbito da crise contemporânea da literatura e das artes em geral, o campo da sociologia aparenta estar mais aparelhado do que os demais para diagnosticá-la. Talvez porque, com a quebra histórica dos fundamentos universais do juízo crítico, a interpretação da obra de arte, como artefato estético propriamente dito, pareça menos relevante do que a elucidação do lugar social ocupado por seus produtores e consumidores. Daí supor-se que os que podem entender melhor as artes sejam os mesmos que estão mais preparados para interpretar os conflitos sociais: os sociólogos, e não os críticos de arte, que permaneceriam tateando as superfícies — a “forma” — dos objetos culturais.
Ademais, salvo engano, a sociologia que tem feito mais sucesso nesse quadro de crise é a inspirada nas formulações de Pierre Bourdieu, que pensa a arte fundamentalmente como “ilusão benigna”, ou, enfim, como uma espécie de isca de uma inevitável “fraude da cultura”. Nessa perspectiva desconfiada, especialmente sedutora para o ethos de um presente sob suspeita, a arte é sobretudo jogo de enganos — e tanto mais perigosa quanto mais sedutora, pois lançaria o seu canto de sereia como instrumento dos grupos de poder contra os menos preparados para esse tipo de combate cultural. Nesses termos, uma tarefa privilegiada pela chamada “sociologia crítica” seria justamente a de desmistificar os lugares benfazejos da arte. De olhos e ouvidos bem tapados para as obras, ela poderia então revelar a quem servem as artes, isto é, o verdadeiro Senhor a mexer os pauzinhos das belas marionetes que elas, no fundo, nunca deixam de ser.
Sem vislumbrar qualquer saída para esse quadro de crise, me pergunto apenas se não haveria alternativas de reflexão menos instrumental e conspiratória sobre as artes. E, no tocante a isso, um ensaio publicado pelos editores da revista nova-iorquina n+1, de abril de 2013, cujo título é Too Much Sociology [Sociologia demais], me pareceu particularmente interessante. O artigo fez barulho e não poucos viram nele uma tentativa paradoxal de propor argumentos sociológicos para desqualificar a sociologia. A mim, contudo, pareceu iluminador. Primeiro, porque evidenciou até que ponto a crítica tem sido reduzida a um gesto de “denúncia” no qual a arte é caracterizada como lugar de trapaças, e os que a frequentam como tipos ingênuos que acabam cúmplices de sua armadilha. Segundo, porque estabeleceu uma correlação surpreendente entre o processo de sociologização da arte e a estratégia econômica de venda de produtos pela internet implementada pela Amazon. Este viés provocativo do ensaio sugere que ninguém executa melhor o programa sociológico de desqualificação da crítica especializada do que Jeff Bezos, o biliardário dono da Amazon.
Como sabem, a Amazon, a mais poderosa plataforma mundial de vendas na internet, obteve essa posição praticando um tipo de comércio chamado em inglês de long tail [cauda longa]. Trata-se de uma estratégia de venda no varejo segundo a qual é preferível vender uma grande variedade de produtos, sejam quais forem, mesmo que cada um deles venda pouco, a vender apenas poucos produtos selecionados, mesmo que vendam bem. Para dizê-lo de outra maneira, o que importa nessa estratégia comercial não é tanto a natureza do produto, nem o quanto ele vende individualmente, como a quantidade de vendas globais efetuada na plataforma. No limite, importa sobretudo que a Amazon se constitua como espaço hegemônico de comércio e não apenas o site onde se vende, por exemplo, muito kindle ou outro produto qualquer.
Assim, para uma estratégia comercial de cauda longa, a qualidade do livro vendido é irrelevante, mesmo se editado pela Amazon. Ainda que não passe de um mimo que apenas a mãe do autor adora, desde que consigne a Amazon como agente da transação, com direito a um percentual importante dela, está tudo bem. Como Bezos explicou com todas as letras no editorial que escreveu por ocasião do lançamento da plataforma de autopublicação da Amazon, ela está disponível para quem quer que deseje vender ali o seu livro, não lhe interessando qualquer “expertise” a respeito. A razão, acrescenta, é que esse tipo de avaliação não é senão “a mere mask of prejudice, class, and cultural privilege”. Ou seja, para ele, qualificação técnica e critério crítico não passam de “máscara de preconceito, de classe ou de privilégio cultural”. Incrível? Pois há muita gente supostamente progressista que repete a mesma ladainha.
Bezos afirma ainda que “even well-meaning gatekeepers slow innovation”. Vale dizer: mesmo os melhores “filtros” — que podemos entender, especialmente no caso da ficção, como relativos não apenas à crítica acadêmica ou especializada, mas também aos leitores críticos usados pelas editoras para avaliação de originais —, não fazem mais do que “atrasar a inovação”. E, vestindo logo a carapuça, não podemos nos furtar à questão de saber por que somos signos de atraso, enquanto a Amazon representa o avanço. E Bezos responde com toda a assertividade que, para ele, a qualidade da obra atribuída pelo crítico nada significa diante do interesse que ela possa ter para as diversas comunidades de leitores.
Como notaram os editores da n+1, Bezos “is adopting the sociological analysis of cultural capital and appeals to diversity to validate commercial success” [adota a análise sociológica do capital cultural, e apela para a diversidade para validar o sucesso comercial]. Ou seja, Bezos lança mão de todos os argumentos progressistas sobre o valor cultural da “diversidade” e da “comunidade” para desqualificar — ou, melhor ainda, para supostamente desmistificar — o juízo crítico. E qual seria a decorrência imediata dessa pseudodesmistificação? Nada mais, nada menos do que a constatação de que o critério decisivo de relevância de uma obra é a possibilidade de que alguém a queira comprar. Quem se mete aí, entre a obra e a venda potencial, está simplesmente agindo contra a diversidade cultural. Um crítico — vale dizer, alguém especializado em estabelecer distinções qualitativas entre as obras — seria não apenas um intruso, mas basicamente um operador de exclusão preconceituosa.
A fórmula enunciada por Jeff Bezos — que deveria ser considerada apenas o que é: um argumento cínico para mascarar o lucro obsceno da empresa —, traveste-se marotamente de sociologia de ocasião contra a censura e os preconceitos de classe. Como nota a n+1, chegamos a uma espécie de outra volta do parafuso. Discussões tão importantes para as sociedades contemporâneas, como as da inclusão, igualdade e democracia, acabam enredadas em discursos que produzem um cala-boca no mais legítimo pensamento crítico, qual seja, o que não está disposto a abdicar de exigências intelectuais de estudo e de repertório na avaliação da obra.
Temos de imaginar saídas menos rebaixadas para questões tão graves e importantes.