A virada acadêmica de Hilda Hilst (II)

A impressionante virada acadêmica que se deu em torno da obra da escritora paulista Hilda Hilst (1930-2004). Ignorada ao longo de quase toda a sua vida, essa obra passou, a partir dos anos 2002-2004, a ser um dos objetos mais frequentes de monografias de fim de curso de graduação
Ilustração: Isadora Machado
31/07/2018

Na coluna do mês passado, procurei caracterizar, a partir dos dados sobre a fortuna crítica de Hilda Hilst levantados e publicados pelo arquivista Cristiano Diniz, do Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulalio da Unicamp, a impressionante virada acadêmica que se deu em torno da obra da escritora paulista Hilda Hilst (1930-2004). Ignorada ao longo de quase toda a sua vida, essa obra passou, a partir dos anos 2002-2004, a ser um dos objetos mais frequentes de monografias de fim de curso de graduação, de dissertações de mestrado e de teses de doutoramento, nas áreas de Letras e afins, em universidades de todas as unidades federativas brasileiras.

A explicação para o fenômeno da virada já ensaiei no número passado do Rascunho. Mas agora devo fazer um acréscimo, ou talvez uma precisão ao que ficou dito. O fato de que a obra de Hilda esteja agora recebendo muito mais atenção do que antes não significa que tudo lhe corra favoravelmente.

Vou tentar explicar por quê.

Para começar, das 1.263 referências levantadas por Diniz tendo como objeto a obra de Hilda Hilst, considerei com destaque o material produzido para titulação acadêmica em contraposição àquele produzido para a imprensa, a fim de ter um melhor retrato da situação da autora como tema do debate profissional universitário.

A primeira surpresa que tive foi a da quantidade de temas diversos arrolados em torno da autora: até 2017, nada menos do que 92 assuntos diferentes foram explorados nas monografias, dissertações e teses, independentemente da frequência com que eles ocorrem. Já considerando o número de ocorrências, os dez temas mais constantes desses trabalhos, por ordem decrescente, são os seguintes:

1) comparações com outros autores;
2) questões de teatro, dramaturgia e performance;
3) questões relativas ao obsceno e à pornografia;
4) questões do erotismo;
5) questões relativas ao corpo;
6) questões do gênero feminino;
7) o tema da morte;
8) questões relativas ao nexo entre profano e sagrado;
9) questões associadas a transgressão e provocação;
10) o tema do amor.

Haveria muito o que dizer sobre essa lista, mas o que primeiro impressiona é a frequência dos estudos que tomam a obra de Hilda Hilst como base para comparações com outros escritores, pensadores e artistas, como, por exemplo, sem atentar para a frequência, Fernando Pessoa, Kierkegaard, Beckett, Bataille, Adília Lopes, Cora Coralina, Ana Cristina Cesar, Caio Fernando Abreu, Adélia Prado, Dora Ferreira da Silva, Severo Sarduy, Diamela Eltit, Osvaldo Lamborghini, José J. Queiroz, José Saramago, Clarice Lispector, Maurice Blanchot, José J. Veiga, Montaigne etc. As comparações são simplesmente a estratégia predominante de abordagem universitária da obra de Hilda.

E não é diferente do que ocorre nos artigos de jornal, onde o nome de Hilda parece a senha para a abertura de uma cornucópia de outros nomes, de todo tempo, lugar, língua e ofício, liderados, em número de frequência, pelo da poeta Adélia Prado. Nos trabalhos acadêmicos de titulação, quem sobe para o primeiro posto das comparações é Clarice Lispector, que já ocupava o terceiro entre os artigos. Seja uma autora ou outra, entretanto, não é tão simples encontrar alguma razão para essas insistentes comparações, ao menos considerando exclusivamente o corpo das obras escritas por elas, cujos universos não têm muitos pontos em contato.

Assim, a explicação que me ocorre para essa insistência comparativa é a mais banal possível: Lispector parece ser tão lembrada quando se fala de Hilst sobretudo por ser a autora brasileira mais conhecida, ou mais reconhecida pelos acadêmicos, vale dizer, portanto, por ser a autora mais canônica que se tem à mão. A ser mesmo assim, a comparação serviria basicamente para argumentar que, de agora em diante, o cânone deve ser ampliado para acomodar as duas. O nome de Clarice Lispector funcionaria sobretudo como uma abonação do nome de Hilda Hilst, ou, de outra forma, como uma espécie de amplificação encomiástica do posto importante (a ser) ocupado por Hilda nos estudos literários brasileiros.

Entretanto, há um outro aspecto igualmente relevante a ser notado nessas comparações: Clarice Lispector e Adélia Prado são mulheres, e as questões de gênero são responsáveis por muitos dos estudos nacionais e internacionais sobre Hilda Hilst, como se pode ver na listagem acima. Aliás, bem mais do que se pode ver nela. Porque, a julgar pela lista que fiz, parecem predominar ali, além do leque vertiginoso das comparações, as questões da performance, do sagrado, da sexualidade, do obsceno e da transgressão ainda antes que as questões de gênero. Mas é um engano.

Olhando atentamente para o conjunto desses tantos trabalhos acadêmicos elencados por Cristiano Diniz, evidencia-se que eles estão, em larga medida e seja qual for o assunto, subsumidos pelas discussões de gênero, as quais isoladamente aparecem apenas em sexto lugar. Quer dizer, ainda que os temas sejam os mais diversos, a abordagem interpretativa deles tende frequentemente a privilegiar aspectos que dizem respeito à escrita da mulher, ao gênero feminino e ao feminismo.

Essa penetração da questão do gênero em muitos assuntos diferentes deixa ver que as comparações predominantes parecem estar ali para alimentar esse debate teórico e não exatamente para esclarecer as obras particulares comparadas. Ou seja, boa parte dessas comparações está a serviço da discussão das questões estratégicas do debate culturalista contemporâneo, que passa a se alimentar também da obra e da imagem de Hilda Hilst, não necessariamente da solicitação feita por essa própria obra, única e intransferível.

Parece justo dizer, portanto, que a maior frequência da comparação de Hilda Hilst com Clarice Lispector se estabelece sobre um duplo viés que articula e privilegia duas questões teórico-críticas contemporâneas, a saber, a do cânone e a do gênero. É curioso: em meio a um movimento que cada vez mais dispersa a obra de Hilda num mar de assuntos diversos, outro movimento encontra-lhes a centralidade combinando a discussão da literatura de caráter feminino com a discussão do cânone literário.

Nessa combinação, há riscos enormes envolvidos: o excesso de concentração crítica no ponto de vista de gênero pode ter como sequela o genérico da discussão ou da interpretação, isto é, a dispersão analítica da obra singular; já a vontade de consagração no cânone pode resultar simplesmente em convencionalização, institucionalização, quando não em vulgarização, como ocorre quando Hilda Hilst vira simplesmente um nome ou imagem friendly (coisa que, aliás, nem ela, nem a sua literatura nunca foram).

Enfim, o que há de mais deceptivo a dizer a respeito desse quadro é: tal efeito colateral duplo de diluição e vulgarização parece ter origem numa espécie de rotação autônoma da máquina acadêmica, que gira, produtiva, sobre si mesma. No seu ponto máximo de giro, não é improvável que ignore a obra mesma que pretende interpretar.

Leituras e estudos sérios devem estar alertas para isso.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

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