A religiosidade subversiva do palhaço (1)

Concepção de Plínio Marcos articula religiosidade e subversão para pensar o papel inquieto, melancólico e convocatório do palhaço
Ilustração: Bianca Rivetti Burattini
01/12/2025

Em junho de 1986, Plínio Marcos editou, às próprias custas, numa edição barata — como fazia usualmente para vender de mão em mão onde supunha haver gente interessada em cultura — um volume intitulado Religiosidade subversiva. O livrinho de capa preta, ocupada quase inteiramente por tipos gráficos em amarelo, reunia três peças suas — a saber: Jesus-Homem (1978), Madame Blavatsky (1985) e Balada de um palhaço (1986). Mais tarde, quando organizei as Obras teatrais (2016-2017), de Plínio, para a Funarte, mantive um dos volumes da coleção com esse mesmo título, acrescentando, porém, às três peças citadas o monólogo O homem do caminho, cuja versão final é de 1996. Trata-se de uma adaptação para teatro feita por Plínio de um conto seu, intitulado Sempre em frente (e ainda antes disso Sempre enfrente), que havia sido publicado no segundo volume de Histórias populares (Canções e reflexões de um palhaço), de 1987. Não tive dúvidas na época, como não tenho agora, de que o monólogo caía como uma luva num volume dedicado às peças que compunham a ideia de “religiosidade subversiva” proposta por Plínio Marcos.

Postos lado a lado, os dois termos, religiosidade e subversão, propõem de imediato uma espécie de dupla negação: a primeira postula uma distância cabal das religiões formais, muitas vezes praticadas de maneira apenas burocrática, para ressaltar, em vez disso, um gesto espiritual irredutível e oposto a elas; a segunda prevê afastamento de quaisquer políticas oficiais ou de Estado, como se evidencia pelo termo “subversivo”, que se tornou corrente no Brasil durante a ditadura militar (1964-1985), quando era aplicado pelo aparato repressivo do Estado contra brasileiros que atuavam politicamente à margem do sistema dual (Arena-MDB) consentido pelo governo ditatorial.

Ou seja, a expressão “religiosidade subversiva” carrega consigo um óbvio sentido de oposição a crenças assimiladas simplesmente por costume ou por falta de imaginação alternativa às práticas correntes do status quo. Tal oposição é a base sobre a qual Plínio Marcos situa a articulação entre a prática artística consequente e a religiosidade, ou o sentimento místico mais autêntico. Vou, então, apresentar nesta coluna e nas duas próximas alguns dos aspectos que sustentam sua concepção, concentrando-me na peça Balada de um palhaço, que é desse mesmo ano de 1986 — ano em que, é preciso lembrar, uma tal conjunção forte de religião e política já não era tão comum ou tão bem-vinda. Apenas para dar um fato contundente: foi por essa época exatamente que a Teologia da Libertação sofreu os golpes mais duros da própria Igreja Católica.

Em relação ao enredo da peça, diria que ela se centra no verdadeiro “diálogo de surdos” travado entre dois palhaços esquematicamente antagônicos: o primeiro é Bobo Plin (cuja autorreferência a Plínio está evidente — Plin, Plínio —, embora também se possa ouvir no termo alguma referência onomatopaica ao conhecido sinal da Rede Globo: “Plin-Plin”); o segundo palhaço é Menelão (talvez uma corruptela de Menelau, o marido traído por excelência, já que sua mulher, a bela Helena, como todos sabem, foi levada por Páris a Troia, dando início à guerra mais célebre da Antiguidade e de toda a literatura ocidental).

Na rubrica inicial das personagens, Bobo Plin é descrito como “espiritual”, “feminino” e “angustiado”, enquanto Menelão, por sua vez, é referido como “materialista” e “positivista”, vale dizer, venal ou interesseiro. No entanto, convém perceber desde já que esse antagonismo é muito funcional dentro da atividade própria dos palhaços, na qual aquele que é menos inteligente, simpático ou sensível presta-se à perfeição como “escada” para que o outro alcance fazer as melhores piadas do espetáculo.

Pois bem, a peça se abre com uma canção de Bobo Plin na qual ele confessa uma intensa dificuldade “no convívio” do que chama de “sórdido bando/ que sobrou das guerras”. Nessas guerras já vividas e aparentemente perdidas, os sobreviventes não mostravam nenhuma “coragem”, seja “para seguir adiante”, seja “para se deixar ficar” — a não esquecer que, também em 1986, estávamos saindo de uma ditadura militar que durou 21 anos. Daí a melancolia que se derrama sobre o circo, causando em Bobo Plin um estado alarmante de crise interior. Embora tenha adotado o ofício de palhaço por um “imperioso apelo vocacional”, Plin sentia agora perder-se a poesia própria de sua profissão naqueles lugares por onde, como ele diz, “escoa a merda” e onde os palhaços são tidos como “malditos” e, usualmente, “presos” e “espancados”.

Tal visão melancólica de Bobo Plin parece afirmar, portanto, que após esse período de guerra ou de ditadura não se seguiu um tempo de renovação das esperanças, como era suposto ou propagandeado, mas, bem ao contrário, um tempo de decepções, de perda da alegria e da vontade das gentes. Assim, Plin sentia que a atividade do palhaço — e, genericamente, de todo artista livre — estava seriamente ameaçada, ainda mais porque vista com desconfiança, senão rancor, por grande parte da população, já comprometida com a massificação operada exemplarmente, naquele momento, pela televisão. (Um eventual aggiornamento dessa guerra de massificação a que alude Plínio teria naturalmente de trocar a TV pelas big techs, IAs, redes sociais, seus gurus, haters, influencers etc.)

Tendo a tristeza então penetrado no espírito do palhaço, surge em cena a personagem da Cigana, figura previsível no nomadismo do circo, que lega a Bobo Plin uma espécie de filosofia da consolação. De acordo com ela, os palhaços dignos do nome jamais se sujeitariam “às leis do reino da banalidade” que se abatiam sobre a maioria dos habitantes daquele lugar. Segundo a Cigana, era justamente por sua não acomodação, pelo “não-estar” que caracterizava a “trilha dos saltimbancos”, que artistas como Bobo Plin exerciam seu especial fascínio sobre as pessoas.

A Cigana revela ainda a Bobo Plin que, por conta de as pessoas estarem se deixando arrastar pela letargia assombrada daquele tempo, precisariam ser chamadas novamente à vida, o que apenas poderia ser realizado com a presença entre elas do “palhaço” — o qual, na versão de Plínio Marcos, não é apenas melancólico e saltimbanco, mas também irritadiço, voluntarioso e inconformado.

Seja como for, a pregação da Cigana articula visão política radical (na medida em que distribui as posições entre extremos) e filosofia mística (na medida em que chama de “vida” algo que transcende a existência ordinária) para chegar a uma fórmula de teor consolatório. De fato, pensando bem, menos consolatório do que convocatório, pois, segundo sua linguagem repleta de um cristianismo difuso e popular, à figura do palhaço, antes de qualquer outra, estava dada a missão particular de “despertar o próximo”.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho