Caro Zeca
Leituras sofrem, sempre, a influência benéfica do acaso. Foi o que aconteceu comigo enquanto lia seu O adorador. Vindo de Oslo, um amigo me trouxe de presente um livro com reproduções das telas de Edvard Munch. Interrompi a leitura de seu romance para folheá-lo. E foi justamente quando parei de ler que consegui, de fato, começar a lê-lo.
Eu avançava com muita dificuldade. Ora rejeitava o livro, que me parecia grosseiro e banal; ora me aferrava de novo a ele, com a impressão de que havia na história do atordoado Lemok algo que eu não conseguia, ou que me recusava a ver. Ler é resistir, e é também lutar contra essa resistência. Você quer conservar uma certa visão do mundo e das coisas, mas o livro em suas mãos, as linhas que se sucedem como facadas, não deixa.
No livro que ganhei de presente, no entanto, deparei com a reprodução de Melancolia, tela que Munch pintou em 1892. Detive-me um pouco para observá-la. Em seu canto direito, espremido contra o ângulo inferior, um homem, que olha para baixo e ampara o rosto com a mão, sofre. A dor o leva quase a despencar para fora do quadro. Sofre de quê? Não há um objeto preciso que origine sua dor. Atrás dele, tudo o que vemos é uma paisagem desolada, mas bela. Se olhasse para trás, me ocorre, talvez ele pudesse enfrentar a dor.
Munch teve a idéia que o levou a pintar Melancolia em certa tarde gelada, enquanto caminhava sozinho pela beira do mar. “Era como se tudo tivesse morrido”, ele anotou em seu diário. A melancolia é a perda de um objeto desconhecido, que arrasta consigo tudo o mais. Então, Munch deparou com um casal que, ardendo de felicidade, se preparava para um passeio de barco. Toda a luz, toda a vida se concentravam naquela mulher e naquele homem. Talvez tivessem sugado para si toda a alegria do mundo.
Passei um longo tempo a observar Melancolia, concentrado na figura do homem solitário que, insistindo em se manter de costas, se recusa a ver a paisagem atordoante que o precede. Quando, de repente, me lembrei que devia voltar à leitura de seu livro. Voltei: mas não parei mais de pensar que o homem pintado por Munch poderia ser, quem sabe, um antepassado do seu Lemok.
Continuo a achar, agora que terminei de ler, que não gosto de seu livro. Digo isso logo, e assim claramente, para evitar mal-entendidos como o que ouvi, outro dia, de um vizinho. “Gostei muito de ver aquela sua nova coluna no Rascunho, em que o senhor dá uma força a jovens escritores”, ele comentou, cheio de entusiasmo. Não deve ter entendido por que reagi com tanta frieza. Espero que não tenha transparecido a minha decepção, para não dizer a minha irritação.
Eu dizia: acho que não gosto de seu livro — e não há motivo para que eu deixe de escrever isso. Mas essa afirmação, Zeca, fala mais de mim, e da leitura que sou capaz de fazer de O adorador, do que do livro em si. Não gosto por quê? — essa é a pergunta que importa. Tento explicar. Ao contrário de Munch, que deixa seu homem quieto, entregue à provação sem fim da melancolia, você leva o seu Lemok a andar e andar, a agir e agir, sem que ele consiga parar — sem que a melancolia, que evidentemente o guia, se explicite.
Abandonado por Bel, a quem continua a amar, seu personagem resolve viver para o sexo. Coleciona amantes sensuais, em especial mulheres casadas e infelizes no amor, e cria para si o mito de Adorador de vulvas. A partir daí, ele, que já não conseguia mais sonhar, já não consegue também ejacular. As ereções intermináveis e o adiamento indefinido do gozo, contudo, prolongam e acentuam o prazer sexual das parceiras. Seu fracasso, assim, satisfaz as amantes, se torna o motivo de seu sucesso.
Não é o fato de Lemok ser um homem banal, e preso a essa banalidade, Zeca, que me perturba. Basta pensar no Ulrich, de O homem sem qualidades, o romance de Robert Musil, a quem o acúmulo de experiências não altera a vida. Ou então no Zeno, de A consciência de Zeno, de Ítalo Svevo, que luta sem sucesso para se modificar, e afunda cada vez mais em si mesmo. Homens banais, quando você os enfrenta, geram livros geniais.
Mas, sou franco: tenho a impressão de que, no fundo, você se diverte e até “goza” com o seu Lemok. Que, de alguma forma, o admira, ou o desculpa. Sim, ele é um personagem muitas vezes simpático, que gosta de escrever poesia (medíocre), que deixa incontáveis projetos literários pelo meio, e que tenta conservar algum sentido de vida. Um pobre sujeito que, depois de trabalhar como autor de bulas de remédios, cai no desemprego. Lemok tem seus momentos sensíveis, algumas reflexões sobre as mulheres cujo vazio manipula, e meditações rápidas e até dolorosas sobre seu próprio vazio.
Ainda assim, você o conserva refém de uma sucessão interminável de experiências sexuais, temperadas aqui e ali pela hipocondria, pelo pânico, pela paranóia. Você, Zeca, não escreve como um escritor, mas como um cineasta, ou um fotógrafo munido de um gravador: limita-se a acompanhar seu Lemok por fora, a escrever sobre o que ele faz e o que ele diz, a persegui-lo. E se contenta (e o reduz) a isso. Ele se vê, todo o tempo, como um manipulador, um incompetente, um ser desprezível, e age (atua) como se estivesse preso a isso.
Romance de ação
Fico com a impressão, Zeca, de que você não conseguiu se livrar da idéia central de “escrever com ação”. Desde o início, você parece ter decidido que escreveria um bom romance de ação. E talvez não tenha percebido que, em torno de seu personagem, como a paisagem de Munch, havia algo que o ultrapassava. Lemok age e age, repete-se e repete-se, preso a uma difusa melancolia. Mas ela nunca se explicita de fato, não toma a forma da dor que massacra, sem nenhum disfarce, o rosto do homem de Munch.
Não: o homem de Munch não é um ascendente de Lemok. Ele é, talvez, uma imagem premonitória daquele homem melancólico no qual, se viesse a se converter, Lemok poderia esboçar alguma salvação. Pergunto-me, então, por que você, Zeca, como autor de Lemok, não se arriscou a defrontá-lo com a dor? Toda a beleza e toda a sutileza da paisagem melancólica que cerca seu Lemok nos fica vedada.
Fixar-se na ação, Zeca, é perigoso. Porque a ação, ao contrário do que o nome diz, costuma ser paralisante. Agir e agir sem parar não é o mesmo que se mover. Ainda que, em dado momento, a ação se reverta em chantagem, perseguição, negócios sujos, como acontece em seu romance. “A vida é mesmo dura e a finalidade é sempre não sofrer”, seu Lemok reflete, já perto do fim da história. Talvez tenha sido para não sofrer que ele se restrinja ao ato. Que se aferre à ação interminável.
No fim do romance, Lemok “mata” seu Adorador e encontra a felicidade na bigamia. Todo o passado fica para trás como um monte de sujeira. Toda a melancolia é reduzida, quase, a uma hipocondria. Prefiro, então, o homem de Munch que deixa atrás de si uma paisagem árdua, mas bela. Que se aferra a sua melancolia, em vez de “resolvê-la” com soluções mágicas.
Lemok fecha o passado cancelando identidades, senhas e páginas eróticas no computador. Despeja todo o seu lixo por lá, na esperança de salvar o presente — mas não consegue refletir sobre o que faz. É um moralista, que se salva com a nova moral dos dois amores. Com duas mulheres, Nathalie e Bel, ele garante a sobrevivência da ação.
Ao longo da leitura de O adorador, quase tudo o que você oferece ao leitor é o frenesi de Lemok — e não o deserto que todos somos obrigados a atravessar, mas do qual ele se empenha em fugir. Será que Lemok cai em si? Parece-me que ele fica mais como um garoto, que continua a culpar o mundo enquanto se esconde sob as saias de uma mulher. De uma não: de duas. Ao reduzir a história do pobre Lemok às peripécias, você deixa pouca escolha ao leitor, que se sente levado, queira ou não a gozar com elas.
Faltou, Zeca, você levar o seu Lemok a se encolher num canto, como faz o homem de Munch, para que a paisagem pudesse saltar à frente, para que a melancolia se fizesse ver. Eu sei, existem milhares, milhões de Lemoks por aí. Todos continuam a correr e a correr, e a fazer sexo sem parar. Os que chegarem a ler seu livro, os mais corajosos, se identificarão. Talvez riam um pouco de si. Nada mais.
Vem-me, agora, uma idéia de Albert Camus, registrada em seus Carnets: “Não sou eu quem renuncia aos seres e às coisas (não poderia), são as coisas e os seres que renunciam a mim”. Era Camus admitindo que a juventude lhe fugia, que ele precisava amadurecer e que isso o angustiava muito. Falta a seu Lemok, talvez, ler Camus.
Não, não acredito que a literatura deva ensinar o bom caminho, ou distribuir fórmulas de salvação pessoal, ou coletiva. No máximo, ela, se é boa literatura, nos ajuda a viver. Não esperava que seu Lemok fizesse alguma conversão mística, ou se tornasse um intelectual, ou qualquer outra idiotice. Acho, apenas, que ele podia ter pisado com mais força em seu deserto. Você teria escrito, em conseqüência, um livro bem mais forte também.
Você poderá argumentar que li o livro que eu desejava ler, e não o livro que você escreveu. É bem provável que seja isso sim. Mas nós, leitores, nunca nos livramos de nós mesmos. Por isso, os livros — como as ereções de Lemok — são intermináveis.
Um abraço de seu leitor
José Castello