Caro Otto
Começo logo pelo mais difícil: não pude separar a leitura de seu romance, Jaboc, das relações literárias que tivemos antes dela. Não acredito, nunca acreditei, que um romance possa existir “nas nuvens”, separado do mundo que o gerou, das circunstâncias que lhe deram corpo. Há sempre um rasto de relações, de influências, de desencontros, de contaminações, a cercar o nascimento de um livro. De qualquer livro. Não haveria por que seu Jaboc escapar disso.
Não acredito, também, na pureza da leitura. Toda leitura é contaminada, toda leitura, mesmo a que se pretenda mais “profissional”, é antes de tudo parcial e pessoal. A literatura não é um produto de laboratório e os leitores não são máquinas de digerir e regurgitar livros. Essas são idéias simples, que parecem talvez muito banais, mas que sempre tenho em vista.
Então vamos lá. No passado, você, muito ansioso, me enviou alguns originais, pedindo minha leitura, meus conselhos — quem sabe, minha ajuda, ou mesmo aprovação. Eu, no entanto, nunca consegui lê-los. Isso pode parecer pedante, ou odioso — mas se refere, apenas, a meus limites pessoais, que são bem estreitos. Desde que me mudei para Curitiba, em 1993, vivo exclusivamente de literatura — de meus livros, de minhas resenhas, de meu jornalismo literário. Não é uma vida fácil: no mundo de hoje, você sabe disso, a literatura ocupa um lugar não só marginal, mas que provoca muitas suspeitas. Mas não digo isso para me lamentar. Ao contrário: a vida é feita de opções e eu fiz a minha, com grande entusiasmo e convicção. Assim como você, agora, ao lançar Jaboc, faz a sua — e se torna um escritor.
Contudo, sempre me falta tempo para ler o que desejo ler. E foi assim, asfixiado pelas pressões do dia-a-dia, que deixei de ler seus inéditos. Posso imaginar que isso lhe causou alguma decepção — ou estarei, vergado pela vaidade, exagerando suas expectativas? Não é à toa que imprimimos um original, que o encadernamos, levamos ao correio e despachamos para alguém. Não é à toa que se elege um leitor. Nesse aspecto, só tenho a agradecer pela confiança que você depositou em mim, Otto — o que não é pouco e, para você, não deve ter sido fácil. Ainda que, por causa de meus próprios limites, eu a tenha traído.
Na verdade, eu me pergunto, ainda hoje, o que você queria de mim. Sempre me pergunto o que esperam de mim pessoas que me enviam originais para a leitura. Vamos falar em bom português. Que eu os indicasse a algum editor de minhas relações? Que eu apontasse possíveis erros, enganos, ilusões em seus manuscritos e assim, ocupando o lugar de professor, ou de orientador, me oferecesse para saná-los? Que eu, simplesmente, lhe dissesse que seus originais eram muito bons, talvez extraordinários, e com isso eu o ajudasse a acreditar em si? São muitas as coisas que eu (e você também) posso pensar.
Não: quando levanto essas hipóteses, não me coloco acima de você. Aos 26 anos, muito inseguro, eu enviei um conto — até hoje inédito e que, agora reconheço sem dificuldades, não presta — a Clarice Lispector. Relato essa história pessoal em meu Inventário das sombras: um telefonema que recebi de Clarice e o modo direto como ela, sem desejar me agradar ou, ao contrário, me agredir, se limitou a dizer que eu era muito “medroso” e que com medo ninguém se torna escritor. Ainda hoje, eu também me pergunto: o que eu esperava de Clarice? Da mesma forma que posso me perguntar, ou lhe perguntar: o que você esperava de mim?
Pois é: agora, anos depois, recebo seu Jaboc, não mais um original em busca de um leitor, mas um livro pronto e premiado, para muitos leitores. Antes mesmo de começar a ler, uma idéia me angustia: terá sido ele um dos originais que recebi e que não li? Essa dúvida contamina minha leitura. Avanço com dificuldades: suas aflições e as minhas próprias aflições estão dentro de seu livro. Elas são experimentadas, também, por seu narrador. De que trata Jaboc? De um escritor que não sabe por que escreve e nem sabe se o que escreve presta, ou não. Em resumo é isto: leio seu romance e, a cada página, sou levado a ver em seu narrador não só você mesmo, Otto, mas também a mim. Seu romance é bom? É ruim? Essas perguntas não me interessam. Talvez a você elas ainda interessem mas, se for esse o caso, você mesmo terá que encontrar a resposta.
Limites e impasses
A leitura de Jaboc me leva a pensar que as aflições que o estimularam, no passado, a me enviar seus originais ainda continuam intactas; e são, na verdade, a matéria-prima de seu romance. Você transformou sua angústia num romance. De novo, você pode me perguntar: isso é bom? é ruim? Insisto: não é isso o que importa! Nada, em si, é ruim, ou é bom. Tudo depende do que fazemos com aquilo que temos, ou aquilo que somos. Inquietações não existem para que sejam “resolvidas”. Inquietações não são charadas. Tudo o que podemos fazer é tomá-las a sério e dar-lhes um destino. É difícil isso? É. Muito. É justamente aí que encontro os limites e os impasses de seu romance.
Leio na página 159: “Palavras, palavras. Portadoras de mistério? Mediadoras (ou congeladoras) da paixão?”. A suspeita em relação às palavras e ao desejo de fazer literatura é o grande tema de seu narrador. Foi também a questão que você me propôs quando, no passado, me enviou seus originais. Eu os guardei durante um longo tempo, sempre na esperança de que, um dia, chegaria a ler. Nunca consegui fazer isso — e houve o dia, odioso, não posso negar, em que me livrei deles. Talvez tenha me livrado deles (não estou muito certo disso), mas certamente não me livrei da aflição que despertavam em mim. Acho muito interessante que você conserve intacta sua aflição: é conservando a suspeita em relação às palavras e ao que fazemos com elas que um escritor se faz. Isso basta para provar, Otto, que você se tornou um escritor.
Só que, com isso, em vez dos problemas desaparecerem, ou se “resolverem”, eles se agravam e se tornam mais complexos. Para seu personagem, a literatura é matéria de salvação. No entanto, e ao contrário, ela se parece também com uma rede na qual ele se acha preso — uma teia, uma armadilha que, se oferece consolo e coragem, também o separa (o salva?) do real. Fuga, ou salvação? Não posso deixar de pensar na voz de Clarice ao telefone: “Você é muito medrrrroso…”, os rrrr rangentes, longos, fruto daquele sotaque que alguns atribuíam à origem ucraniana, outros simplesmente às conseqüências de uma língua presa. Sotaque? Ou a marca de seu Lispector — a marca de sua língua pessoal?
As citações, Otto, atravancam seu romance. Será que você precisa delas para acreditar no que escreve? Nunca fica muito claro em que medida elas o consolam, ou o infernizam. Quem se ampara nesse mar de citações: seu personagem, ou você? Talvez elas sejam um artifício para não perder a fé em si mesmo e conservar a coragem para prosseguir. Fé? Mas a literatura não é religião; ela não se ampara em dogmas, ou revelações, ou rituais, ou cânones. E citações não deixam de ser rituais: nada contra elas, mas podem asfixiar e calar — apesar da zoeira que provocam. A literatura é o lugar do que é radicalmente individual. E o que é radicalmente individual, cada um encontra da sua maneira, na sua hora, no seu estilo e sem ter escolhido (ou se convertido) a isso.
Seu romance guarda boas reflexões sobre os obstáculos que atulham o caminho de um escritor. Você abre o Canto XI: “Estacou num parágrafo que não conseguia refazer. Alterou a ordem das frases, intercambiou orações, substituiu palavras, fragmentou períodos ou, ao contrário, encadeou-os. Nada ficava bom. Às vezes dava vontade de fazer tudo, qualquer negócio, menos escrever”. Pode a literatura, contudo, ser reduzida a questões técnicas? Será ela o resultado de um bom funcionamento? Escrever bem é fazer boa literatura? São ilusões que atormentam seu personagem e que o levam à obesidade literária. Então, ele se empanturra de frases, de citações, de recursos, de estratégias. Mas será isso escrever?
Assim como a resposta nunca virá de fora — de um leitor “competente”, ou “experiente”, ou qualquer outro papel imaginário que você possa me atribuir, ela também nunca virá de manuais, de exercícios regulares, de cânones. Seu personagem se sente condenado a escrever um livro: pois é dessa condenação que se deve sempre partir. É disso, e de nada mais. Leio seu Jaboc, Otto, e, de alguma forma, encontro nele o mesmo Otto que me enviou os inéditos que nunca li. Entendo isso como um sinal de que você não perdeu o fio que, desde o início, o liga à escrita. É só o que posso sugerir: nunca o perca de vista. Mas na verdade, dura verdade, isso não depende só de você.
O que vai fazer com esse fio? É o problema que seu livro agrava, problema a que todo livro, uma vez pronto, dá corpo. Cada livro, em vez de ser uma solução, é uma pergunta. Por isso a literatura, apesar de todos os maus agouros, resiste.
O abraço de seu leitor,
José Castello