Um Andersen brasileiro na ilustração

Em sua obra, Roger Mello tem a ousadia de desenhar o não dito, dar corpo visual a metáforas, inquietar a forma sem descanso e sem subestimar o leitor
Maíra Lacerda (colagem a partir de ilustrações de Roger Mello)
01/10/2024

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

A coragem de arriscar é o traço dominante na produção de Roger Mello, o primeiro ilustrador latino-americano a ganhar, em 2014, o prêmio Hans Christian Andersen, concedido pelo International Board on Books for Young People, e um tradutor inquestionável da cultura brasileira. Em sua obra, que contempla texto visual e texto verbal, o artista partilha uma compreensão do tempo da infância tomado como Kairós, isto é, o espaço da potência, da dimensão eterna e não linear, em contraposição a Chronos, o tempo linear, cuja medida é sequencial e quantitativa. Na aceitação dessa potência, a criança realiza-se no presente e entende a transformação como característica básica a levar do caos ao cosmos, ou seja, da desordem em que os elementos costumam se apresentar antes de alcançar uma ordem reconhecível.

Ordem reconhecível não significa, no entanto, ordem previsível. Todo cuidado é pouco é, nas palavras do autor, “um conto contemporâneo de acumulação, no qual a relação entre as personagens investiga o caos”, caos que pode advir da mudança de um pequeno detalhe — no texto ou na imagem —, circunstância para a qual as crianças costumam estar muito atentas. A acuidade para o pensamento infantil e a fidelidade a essa posição regem a produção autoral de Mello, com as obras iniciais compostas por traço convencional dentro do universo de produção de imagens para crianças e aproximações ao cartum, mas ultrapassando o caráter em geral anedótico do gênero, com propostas de maior densidade reflexiva. A flor do lado de lá, que tem uma anta por protagonista, propicia boa reflexão sobre a personalidade humana; O gato Viriato explora o gozo do imprevisto e a contínua irrupção do caos como dado fundamental da existência, enquanto a reflexão ecológica é a tônica de O próximo dinossauro.

Tais livros, de fácil contrato de comunicação, como reconhecido em alguns trabalhos críticos, já denotam a força do imaginário no âmbito da existência humana e a condução pelo absurdo como linhas de força no conjunto de suas obras, a que logo vão se juntar a oralidade e a tradição, tomadas em corte individual e coletivo, em termos de celebrações populares e compreensão de uma herança cultural. Ao ser convidado, em 1992, para ilustrar o conto de Guimarães Rosa, Fita verde no cabelo, um de seus trabalhos de grande repercussão, Mello encontra no traço expressionista a forma de dar a ver a ancestralidade e as perdas, inevitáveis etapas do humano no contato com o conhecimento, em processo de crescimento e imersão no mundo. O vazado em silhueta sobre o desenho abre possibilidades à construção de sentidos para o texto, contido e essencial nas palavras de Rosa, definitivo na cor verde com que Mello pontua o preto de grafite e carvão.

A formação de designer possibilitou ao artista explorar imagens e materialidade para compor suas narrativas. Com uma trajetória rica em experimentações, seu traço vai da representação realista à abstração, e suas composições misturam o desenho a outras técnicas, explorando diferentes materiais. As labaredas recortadas em papéis fluorescentes trazem a incandescência do fogo às páginas, contrastando o laranja e o magenta com a realidade majoritariamente preta e cinza de Carvoeirinhos. A capa que se dobra ao redor de Zubair e os labirintos repete o movimento do tapete que esconde o livro precioso, tesouro perdido da Mesopotâmia, fazendo o leitor espelhar o personagem no movimento de sua descoberta. O fio da colcha que cobre o menino é traço, mas é também renda, é desenho feito no papel e feito em tecido, e tudo se une para contar a história e os sonhos de João por um fio. Em sua obra, a linha do desenho se junta a outros materiais para construir universos particulares: recortes variados de papel e plástico, com vislumbres de fotografias diversas, compõem as nuvens de fumaça que saem do cigarro e dos fornos, reproduzem os destroços da rua bombardeada de Bagdá, e ainda confeccionam toda a realidade das casas sobre palafitas em que vivem os Meninos do mangue.

As narrativas populares, que exploram a riqueza e diversidade da cultura brasileira, propiciaram a construção da linguagem que tanto destaque traz à obra do artista. Ao representar tradições como Bumba meu boi bumbá, Cavalhadas de Pirenópolis e Maria Teresa, Mello encontrou formas ao mesmo tempo originais e familiares de recontar aquilo que constitui o povo brasileiro, permitindo a toda uma população o reconhecimento de si na mirada nova e potente do autor. Claudia Mendes, estudiosa da obra de Mello, identifica seu trabalho, junto ao de outros ilustradores brasileiros, em termos de afinidade com o conceito de antropofagia modernista, “de devorar as influências estrangeiras e regurgitar formas nacionais”.

O artista emprega em suas primeiras obras um estilo figurativo realista, logo substituído pela pesquisa da cultura popular brasileira e das vanguardas artísticas europeias, até chegar a uma linguagem própria que funde uma variedade de referências em um estilo bastante particular. A evolução da linguagem visual de Mello sinaliza um processo de descolonização visual que remete aos ideais dos primeiros artistas modernistas brasileiros. A permanência dos ideais “antropofágicos” é significativa na cultura brasileira em geral, e parece ser o caso também na literatura infantil em particular.

Essa trajetória de busca e exploração leva Roger Mello ao já mencionado prêmio, num ato de legitimação internacional. Ousadia de desenhar o não dito, dar corpo visual a metáforas, inquietar a forma sem descanso e sem subestimar o leitor, independentemente de sua idade, entram na justificativa do júri, com realce para

um entendimento respeitoso e gratificante por outras culturas. As histórias mostram a compreensão entre as nações. As ilustrações são tanto inovadoras quanto inclusivas e promovem a tolerância e o respeito entre as pessoas de diferentes culturas e tradições.

Como Claudia Mendes, reconhecemos que o prêmio concedido ao ilustrador brasileiro contempla “um percurso evolutivo de gerações de artistas empenhados em desenvolver uma linguagem visual autônoma (…)” e mais: é toda a América Latina que se vê identificada em sua pluralidade de elementos autóctones, de colonização estrangeira e em síntese de linguagem no processo libertário de autoria. Roger Mello, o jovem destemido na ilustração, como identificado por Regina Yolanda, Ana Maria Machado e Ziraldo na década de 1990, é hoje uma referência universal, embaixador de uma visualidade brasileira e exemplo da descolonização da imagem para uma nova geração de artistas — escritores e ilustradores — e seus leitores.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

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