Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda
Se Capitu pudesse ter contado sua parte da história em Dom Casmurro, não existiria a cigana oblíqua e dissimulada, mas uma vítima dos ciúmes obsessivos do marido? Os intermináveis julgamentos em sala de aula sobre sua culpabilidade ou inocência careceriam de apoio textual? Ou, como já se pode ler no presente, ela seria o objeto do deslocamento de um desejo sexual interdito pela moral hipócrita da sociedade brasileira do II Império? Ler essa obra de Machado de Assis em interlocução com o pensamento freudiano muda toda a história. Não só a narrativa pode deixar ver com mais clareza a presença do interdito, como desnudam-se as concepções preconceituosas em relação à mulher ou seus limitados movimentos sociais, que a deixam como vilã, ou vítima.
Os clássicos são obras que nunca terminam o que têm a dizer, na perspectiva de Italo Calvino, e Ana Maria Machado, que tece as próprias reflexões em Como e por que ler os clássicos universais desde cedo, considera a leitura de tais obras um campo de diálogo possível e necessário com o tempo anterior e o tempo posterior. Segundo a autora, sem a leitura daquilo que nos precede, não poderemos ler a própria contemporaneidade. A leitura de tais obras, no entanto, pode ser árdua para gerações mais novas, em contextos sócio-históricos marcados por transformações intensas, como foi o século 20, como é o século 21.
Boas professoras de literatura podem cumprir seu programa de clássicos por meio da leitura de A audácia dessa mulher, em que Capitu encontra voz para contar sua versão da história, negada na magistral obra de Machado pelo pseudoautor, Bentinho, ou Dom Casmurro. No romance de Ana Maria, duas mulheres contemporâneas têm suas histórias narradas em meio à leitura de um volume, misto de caderno de receitas culinárias e diário, que pertenceu a uma desconhecida do século 19. Ao final, a protagonista Bia descobre em Maria Capitolina a autora do caderno, e, nela, Capitu, aqui recriada em outra narrativa.
Se costuma ser difícil para jovens do século 21 compreenderem o amargor de um homem idoso, expresso em vocabulário difícil, não terão qualquer dificuldade em entender os percalços de Bia e Ana Lúcia, em representação literária com linguagem de hoje, conversas orgânicas de um cotidiano bem conhecido. Sem negar princípios tradicionais do feminino, são mulheres capazes em sustentar um projeto identitário feito de escolhas e riscos, no rastro da Capitu construída por pena ou teclas em mão de mulher, “mulher com um teto todo seu e uma renda” pessoal, itens que Virginia Woolf recomenda como indispensáveis à escrita feminina, e que Ana Maria corrobora:
Ergueu o copo com o final do vinho, brindando a si mesma:
— À audácia dessa mulher, que ousa viver em campo aberto, correndo o risco da verdade. E acredita num amor latente e latejante. Implícito e vivo como um filho no ventre e uma semente na terra.
No reconhecimento do feminino como especial portador de vida, a escritora celebra outra potência de vida, por tanto tempo negada ao feminino:
Como um gene. Ou uma memória — brindamos nós com ela, erguendo esta taça de escrita e leitura, também cintilantes do pôr do sol ou do nascer do dia.
Leitoras habituais da coluna podem se perguntar, “comentários sobre um livro para pessoas adultas numa coluna de literatura para crianças e jovens?”. Já havíamos anunciado, no texto do mês passado, que Ana Maria Machado “Formou gerações de leitores e leitoras, que, atingida a idade adulta, encontraram a autora à espera delas, com obras diversas, mas sem abandonar a visão de mundo a que estavam acostumadas”. Leitores deste espaço sabem que procuramos falar em livros que também podem ser lidos por crianças e jovens. Assim como, adultas, lemos por escolha e com prazer obras cujo destinatário implícito é a criança.
Se assinalar uma idade para a leitura de A audácia dessa mulher traz algum conforto crítico, diríamos ser uma obra que também pode ser lida por jovens. Ou que deve ser lida por jovens, ao lado, antes ou depois de Dom Casmurro ou no lugar de Dom Casmurro, que pode ser visitado mais tarde, a partir da instigação provocada pelo romance de Ana, e em momento de maior experiência de vida. Relevante é destacar que esta autora não se prende a uma idade para endereçar a perspectiva da resistência, resiliência, e novas fundações do ser humano.
De olho nas penas, obra capital na literatura brasileira e latino-americana, vale-se de um provérbio popular para aludir à origem das crianças brasileiras nascidas em território estrangeiro em função do exílio político dos pais: “gato que nasce em forno não é biscoito”. Em luta explícita contra qualquer tipo de ditadura, como já aventado, Ana Maria rega a consciência do pertencimento latino-americano de forma ímpar. A história violenta e usurpadora da colonização de Espanha e de Portugal no território mais tarde chamado de América Latina por interesse europeu (era preciso criar um território latino para fortalecer a França em alianças contra a cultura anglo-saxônica), é narrada ao pequeno Miguel pelo Amigo, capaz de assumir várias formas e de levá-lo às diversas terras a constituir a genealogia do menino: as montanhas andinas, os rios amazônicos, as savanas africanas, onde conhece Ananse, que sabe tecer fios e “ajudar a fazer a teia de histórias capaz de sustentar todo o povo de uma terra”.
Ana Maria Machado, escritora ímpar capaz de revelar a crueldade horrenda da escravização, sem incorrer em panfletarismo ou escândalo, é esta Ananse. Com histórias dentro da história, a autora põe em cena o paternalismo que, na sociedade brasileira, ajuda a acobertar a injustiça e a miséria, sustentáculos do racismo que nos assola.
Com a clareza de que a literatura é campo para debater situações nefastas em nossa história, a escritora traz para uma realidade bem compreensível temas que são bastante complexos. Escolhe, por exemplo, representar o exercício ditatorial em um prédio de apartamentos, cujo síndico proíbe às crianças terem animais para companhia. Em ato bem coordenado de resistência, que implica fantasia, consciência política e ânsia de liberdade, as crianças levam unicórnios a invadirem o playground, tornando inócuo o controle sobre o grupo. Um montão de unicórnios valida a vontade infantil e atesta seu poder de luta por um bem coletivo.
Temos assistido, no país e no estrangeiro, a ações de censura — na imposição de uma verdade única, como nos fala Chimamanda Ngozi Adichie —, que partem de pessoas despreparadas, movidas por perspectivas individuais ou fundamentalistas. Ana Maria Machado foi também vítima de censura crassa, como outras autoras e outros autores brasileiros. Sua obra, porém, já clássica, repercute para além de ações espúrias; independentemente das idades a que possam ser destinadas inicialmente, é um potente alerta para o direito à fantasia como espaço de construção do porvir. Este porvir, chegando como um presente próximo.