Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda
Que valor tem o eu que a poeta Enheduana diz pela primeira vez na literatura? Em clamor a toda poderosa Inanna, ela pede à deusa reparação pela injustiça de que foi vítima, e questiona sua expulsão do templo, alegando: “Eu, a en-sacerdotisa, eu, En-hedu-ana! Carreguei a cesta ritual e entoei a canção de júbilo”. Como essa subjetividade, marcada em texto que vem da antiga Suméria e dos longínquos anos de 2300 a.C., nos alcança hoje? Como trazer vivências e sentimentos experimentados por esse eu conhecido apenas do próprio sujeito para um compartilhamento com outros eus? Como, nesse processo, repensar nosso próprio lugar em relação aos demais seres que nos circundam?
Saber a pessoa que somos, e sermos capazes de dizê-lo, é o centro de uma das poéticas mais caras à literatura. Dizer eu, porém, implica em reconhecer que existem outros eus, dos quais me diferencio, na saudável consciência da alteridade. Impossível saber quem sou eu sem o outro. Nas palavras de Leandro Konder, que repercutem a eterna indagação de filósofos e antropólogos:
Como posso entender um ser que me é estranho a partir de critérios que me são inevitavelmente impostos pelo meu próprio ser?
A literatura não nos dá respostas, mas faz ecoar possibilidades.
O primeiro outro do humano é aquele que cuida dele: a mãe biológica, o mais das vezes, sem que isso constitua uma regra. Na literatura que costumamos entregar a crianças e jovens constata-se razoável presença da figura materna, em tradução de acolhimento, mas também de poder arbitrário. Conte-mais, livro ilustrado de Yael Frankel, constrói-se no diálogo entre a criança que elabora hipóteses pouco convencionais e a mãe que as aceita, sempre incitando a menina a prosseguir: “— Ohhh… conte-me mais”.
A ilustração sublinha, de variadas formas, a hospitalidade materna em relação à visão de mundo da criança, que elabora a narrativa de sua própria origem em recorte bastante peculiar e no qual a identidade da mãe parece ser posta em xeque.
— E da minha casa nasceu este chapéu.
— Hi, hi, hi. Você ficou tão charmosa.
— Do chapéu nasceu uma maçã.
— Mmmmm… Deixe-me mordê-la.
— E da maçã nasci eu.
— Mas então… se a sua mamãe é uma maçã, quem sou eu?
Entregue ao eu fabulador, a resposta quanto à identidade da mãe atenderá, é evidente, à formulação da identidade desse eu. Em obra da mesma autora, que apresenta experiência semelhante, porém a partir de outro lugar, um menino pequeno resolve passar ao irmão que está na barriga da mãe informações essenciais sobre a família em que vai nascer. O tempo, marca vital da narrativa, inaugura a relação entre os dois personagens:
Antes de começar a contar, você tem que saber o que dias, meses e anos são, porque se você não fizer isso, não vai entender nada.
Apreendido pelo narrador em sua limitada, mas rica existência, o tempo se deixa ver na precisa linha cronológica presente nas falsas-guardas do livro. É ela que registra os acontecimentos importantes da vida do narrador, incluída a espera do irmão.
No decorrer da espera que vai se encurtando, o narrador se dá conta de uma transformação vital:
Estamos viajando de férias, mas não se preocupe, porque já estaremos em casa quando você sair da barriga da mamãe. Sei disso porque o papai disse que é a última vez que saímos só nós três, que depois seremos sempre nós quatro.
Tudo o que aconteceu antes de você chegar expõe um eu já com boa consciência de ser e estar no mundo e que se encarrega de integrar o irmão a essa experiência, detalhando para ele, numa descontraída narrativa, singularidades do grupo familiar.
Gregária por natureza, a pessoa humana não costuma ter dificuldades em perceber instâncias que transcendem o individual e devem ser incorporadas à existência. Nesse contexto, a busca pela individualidade e a compreensão da alteridade costumam, ambas, ser fruto de uma jornada que vai ao encontro da força e da significação da ancestralidade, para ressignificar a existência individual.
Tradição é o conceito-chave em Fevereiro, de Carol Fernandes, cujo tema é o Afoxé Filhos de Gandhy, de forte presença no Carnaval de Salvador:
Em fevereiro, minha casa se transforma. Acordo com vozes animadas e palavras que ainda não entendo.
À medida que gestos incomuns tomam o cotidiano, o menino narrador caminha para conhecer rituais que têm origem na tradição. E a tradição não se restringe a um momento festivo no calendário, mas a uma linha, invisível e inquebrantável, carregada na memória, materializada em uma cultura transplantada, adaptada, e pujante na manutenção de um legado ancestral. Personagens essenciais ao evento, avô e avó, garantem a transmissão de um saber que perpassa as linhagens familiares. Branco e azul, as cores do bloco, mas também de divindades africanas, esparramam-se pelas páginas, em ilustrações delicadas e convidativas, na permanente alusão a marcas identitárias dos povos afrodescendentes.
A linha da ancestralidade, determinante em Loba, de Roberta Malta e Paula Schiavon, demanda um movimento inicial da mãe, em deferência à avó, e logo se revela como uma busca da menina. Os elementos clássicos do tradicional Chapeuzinho Vermelho são reconhecíveis, mas a relação entre eles mostra-se organizada de maneira diversa. A pedido da mãe, a menina vai ao bosque para colher flores, pois a avó virá visitá-las. Nesse espaço do desvio e da descoberta, acontece o confronto com o lobo, no qual a menina se vê refletida nos olhos dele, nas pupilas dele. Se tomarmos a etimologia da palavra pupila, vislumbra-se a menina dentro da menina. Desse encontro, feito revelação e aconchego, transborda o vermelho, cor que conecta as gerações na sequência das ilustrações.
Os caminhos do eu incluem necessariamente o outro, esse que veio antes, esse que virá depois. É complexa a consciência do pertencimento, e nela se debatem aceitação e recusa. Todas essas personagens sofrem uma desestabilização do eu e precisam reconstruí-lo em face do movimento brusco, fruto da instabilidade que caracteriza a vida. O leitor e a leitora, na experiência propiciada pela leitura, alcançam a síntese da relação estabelecida por Konder:
No diálogo com o outro, eu não harmonizo as diferenças (que são essenciais à prática dialógica), não supero as frustrações que me são impostas pelos limites (efetivos) da comunicação, não elimino os riscos, porém aprendo a apreciar a polifonia, aprendo a ouvir a diversidade das vozes.
Assegurar o aspecto construtivo da mudança, no necessário trajeto à complexidade do que somos, é uma das tarefas da literatura. A criança que contorna seu eu pela natureza que empresta à mãe, o pequeno que converte medo e ciúmes numa narrativa ao irmão anunciado, a menina que aumenta o mundo para receber a avó na casa pequena, o menino que precisa aprender palavras e práticas que não entende, todos participam da tarefa humana de identificar-se, dizer, como a poeta, “Eu, que fiz isso e aquilo”. Criar o discurso para tal é função da literatura, em vigorosa e contemporânea poética.