Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda
O tema desta coluna já estava escolhido. Duas obras, uma de 2016, outra de 2023, estariam conosco na discussão do potencial da literatura para caminhar com o humano nos momentos mais difíceis da existência, em especial na elaboração de tragédias coletivas, experiências que levam o humano ao esgarçamento de sua própria condição, como revela Primo Levi na obra É isto um homem?. Em um campo de concentração nazista, o escritor invoca Dante para lembrar ao companheiro que fomos feitos para a sabedoria e a experiência. Na elaboração que propicia, a literatura é vital para o retorno à natureza humana, e é por meio dela que Levi convoca Pikolo a não se conformar com a desumanização a que estão submetidos, mas a agir como seres dotados de inteligência e afeto.
Reler Um dia, um rio, de Leo Cunha e André Neves, e Tempo de colher flores, de André Zamboni, em meio às notícias do que acontece neste momento no Rio Grande do Sul, é especialmente doloroso. Experimentar, na literatura, o luto e a perda que latejam em cada reportagem de televisão, nas notícias de pessoas queridas que chegam pelas redes sociais, na impotência expressa de quem, solidário e à distância, pouco pode fazer, reaviva sofrimento e angústia. Por outro lado, essas leituras permitem refletir sobre os impasses humanos e abrem perspectivas, à custa de esforço e trabalho, para a elaboração de situações incompreensíveis à percepção sensível e reflexiva dos seres humanos.
Anos atrás, um ato terrorista na Colômbia matou uma criança pequena, e as diretoras da escola em que estudava recorreram à escritora e crítica Yolanda Reyes, que havia trabalhado com a menina em seus talleres de literatura, pedindo indicação de livros que ajudassem o grupo a lidar com a enorme perda. Em extremo sofrimento, Yolanda recorreu à amiga Marina Colasanti, cuja resposta está no magnífico artigo Lendo na casa da guerra. Qualquer “livro entre os muito bons” […] tirado ao acaso “do grande saco universal dos livros” seria propício a isso, diz. Enfatizando o acolhimento e a hospitalidade que caracterizam a literatura, Marina sublinha o quanto ela pode acalmar “pequenos corações cheios de medo”. Voltando ao nosso contexto, os dois livros selecionados por nós têm presentes essa dádiva, essencial para ultrapassar os impasses comuns à existência humana, muitos dos quais, vividos coletivamente, têm reverberações individuais bastante específicas.
Um dia, um rio apresenta a história do rio Doce, devastado em circunstâncias de crime ambiental, em cuja raiz estão a ambição e a omissão. Ao escolher dar voz ao rio, e, nessa escolha, optar por uma voz de infância, os autores chamam à cena a criança grata, em face da natureza dadivosa do rio:
Minha dança colore os mapas,
Meu canto refresca as matas.
Também a criança crítica é convocada na passagem do discurso de um tempo presente para um tempo passado:
Meu leito virou lama,
Meu peito, chumbo e cromo.
[…]
Eu era doce,
Hoje sou amargo.
Como em todo livro ilustrado, a narrativa se dá em duas instâncias, que se articulam na construção de sentidos. A força das imagens de André Neves é de extrema relevância na significação dramática, atuando em forte colaboração com o conteúdo verbal, desde a personificação do rio até a paleta cromática, com tons de marrom e vermelho invadindo o branco das páginas iniciais, para marcar a extensão da lama e o sangramento do rio. No momento crucial de ruptura da barragem, as palavras silenciam, deixando o impacto entregue às manchas de tinta que redefinem a paisagem.
No transtorno da própria natureza, ao perder tudo o que fluía com ele em direção ao mar, marcando caminho de vida, o rio descobre a solidão e, nela, a ação necessária.
Ninguém pra contar a história.
Hoje quem conta a história
Sou eu.
Contar a história, se é o que parece restar a fazer nessas circunstâncias, é igualmente abrir o fluxo do discurso para ferir o impasse e vislumbrar um futuro:
Flores nascem no deserto,
A água brota na rocha
E a luz da escuridão. Serei um rio,
UM DIA.
Contar a história para uma única ouvinte atenta é a via escolhida na segunda obra que trazemos aqui, Tempo de colher flores. Um relato de luto, realizado na impossibilidade do direito de enterrar seus mortos, um dos pilares da nossa humanidade, não ignora uma questão fundamental:
Lembro meu pai dizer “É um erro essa barragem”. Disse isso e mostrou a pele toda arrepiada. […] “Sempre achei errado, não sei dizer o porquê. Mas sinto o arrepio, há muitos anos, é um erro.”
A voz da personagem aponta a diferença entre tragédia, como alguns nomearam, e crime ambiental, o que de fato ocorreu. Sem se ocupar da questão, a narrativa não deixa, no entanto, que passe em branco. O rompimento da barragem de Mariana, em Minas Gerais, coloca em evidência a dor que se acrescenta àquela provocada pela morte:
“Presumidamente morto”, é o que a advogada diz.[…] Sim, dão ao meu filho um tipo de morte que não acaba, que continua na Justiça, sabe-se lá por quanto tempo, não uma morte finalizada no atestado de óbito, mas que começou horas atrás quando o bombeiro-chefe deu por encerradas as buscas por desaparecidos.
Nos encontros com a psicóloga no postinho, Magnólia narra o vivido, com tudo aquilo que cabe num luto: dor, culpa, revolta. A tônica de sua fala é o jardim que o filho plantou e que teve as flores arrancadas antes de poderem ser colhidas. Metáfora pungente, o tempo das flores estrutura a narrativa, fundada na expectativa ceifada de fruição na colheita. O texto da crítica Fabíola Farias, em publicação recente no Facebook, considera:
Seu texto bonito e pungente afasta qualquer possibilidade de facilidades que histórias como essa podem ter. Penso que livros como este precisam chegar às salas de aula, às bibliotecas e às livrarias, para que muitas pessoas, de todas as idades, possam ler nossas tragédias, que estão longe de ser apenas pessoais.
Reforçamos o pensamento de Fabíola de que livros como esses precisam estar nas mãos de crianças e jovens, escolhidos pelos autores como leitores implícitos de suas obras. A literatura, de forma geral, precisa estar, como prognostica Zamboni, na reconstrução dessas vidas, tocadas direta ou indiretamente por tais acontecimentos. Tal foi a ação de Jella Lepman, na Alemanha pós-guerra, utilizando os livros como meio de amparo à infância e construindo a Biblioteca Internacional da Juventude de Munique como local do encontro possível com a vida.
Para Umberto Eco, a literatura nos ensina a morrer, e porque ensina a morrer, ensina a viver. Nesse processo, ao qual é inerente o ato de renascer, a confiança na renovação brota das reconhecidas incoerências da vida, como no texto final de Um dia, um rio. A flor assegura a semente, a palavra diz a impossibilidade e, como expresso em Tempo de colher flores, dá maior espessura ao tecido fino que é a felicidade.