O Lobo, o feminino e a memória

Entre a tradição oral e os desafios do século 21, o lobo e a memória expõem o feminino como guardião da vida
Ilustração: Maíra Lacerda
01/10/2025

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

Por que Chapeuzinho Vermelho precisa ir à casa da avó para conhecer os perigos de dar ouvidos a estranhos? Será esse um encontro realmente funesto ou a narrativa, considerada como a mais conhecida dos contos tradicionais, traz embutidos outros sentidos, que garantem sua permanência ativa no imaginário ocidental? Ao envolver duas mulheres, avó e neta, o encontro com a fera implica, além da transmissão da ancestralidade — que nas versões mais antigas do conto apresenta-se em um ato de antropofagia — o confronto com a fera interior. Tal caráter, no entanto, diluiu-se com a assepsia da história ao longo do tempo. Neste século 21, que novos contornos são visíveis na troca comumente atribuída à transmissão matriarcal?

Perrault atribui a uma personagem mítica feminina a autoria dos contos coletados entre os camponeses. Arquétipo encarnando o espírito das velhas avós, Mamãe Gansa é modelo de sabedoria e poder narrativo para muitas outras mulheres. Transmite com simplicidade histórias pertencentes à comunidade, almejando comover, deleitar e ensinar quem as ouve, em franco exercício de compartilhamento de experiência e preservação de memória humana.

Marina Colasanti expôs com agudeza a dimensão da absorção da ancestralidade contida no conto Chapeuzinho Vermelho, que se banalizou ao longo dos séculos. Originalmente, o Lobo chega à casa da avó antes da menina, mata-a, pica-a em pedacinhos e oferece-a em refeição à própria neta. A capa que (re)veste a menina e confere a ela a identidade de Chapeuzinho Vermelho é o signo mais expressivo do ritual de comunhão com a carne e o sangue da avó. Ritual aceito na simbologia cristã e recusado em sua crueza material, o episódio é expurgado em versões seguintes, até tornar-se o que é: uma história de advertência, sobretudo em relação à violência sexual a que as mulheres estão frequentemente expostas.

Se continuarmos com a voz de Marina, podemos ouvi-la na entrevista concedida ao Paiol Literário e publicada na edição 96 do Rascunho. Diz Marina:

Não vou olhar para trás. Como escritora profissional, eu vou olhar ao redor. Nem para frente, nem para trás. Vou olhar ao redor.  

Ao olhar ao redor, Marina pôde ver (e nós também) que o Lobo continuava em cena. Neste início do século 21, no entanto, seu alimento é outro. Seguindo um ritual semelhante, o Lobo devora a memória alheia. Todavia, nessa devoração, nesse assassinato não há qualquer possibilidade de incorporação existencial. Na realidade de envelhecimento massivo com que somos contemplados na contemporaneidade, o desfazer da memória faz dela também uma realidade líquida, como tantos fenômenos à volta. A faculdade de saber quem somos perde-se em meio a neurônios que morrem.

Guilherme Augusto Araújo Fernandes é a obra-prima que, em leveza e densidade, dá à questão um colorido de rico cotidiano. Mem Fox narra a história de Guilherme Augusto, um menino que mora ao lado de um asilo de velhos, onde tem vários amigos. Entre eles, dona Antônia Maria Diniz Cordeiro é a preferida. Ao saber que ela perdeu a memória, o menino indaga a diferentes pessoas: o que é uma memória? Diferentes respostas permitem a ele buscar novas memórias para a amiga, num processo circular de ressignificação. O arco infância-velhice é construído sobre a delicada renda de evocações que impregnam o ser humano, bem traduzida pela aquarela de Julie Vivas.

Em Manuel, Rita, Flor…, a artista visual e escritora Renata Bueno, ao fazer retratos de pessoas em envelhecimento, observa ângulos do esquecimento — negação da função humana da memória, ou apenas um desvio.

Rui esquece onde colocou a chave do carro, esquece de tirar o aparelho de ouvidos para entrar na piscina […] para chamar um neto, fala o nome do filho […] (mas) nunca se esquece […] de fazer aquele omelete especial que só ele sabe fazer.

Rui é o distraído, aquele cuja atenção é puxada para diversas partes, afastando-se das demandas imediatas, sem esquecer, porém, os vínculos com o presente. Diferente de Irene, que lembra de fatos bem antigos e de detalhes dos idosos que moram na mesma casa que ela, mas se afasta de forma irremediável do presente, incapaz, portanto, de construir memórias que, no futuro, a abasteçam de passado.

Irene lembra tudinho do dia do seu casamento. A cor do vestido de Beatriz, o gosto do docinho de amêndoas. […] Irene não lembra que dia é hoje. Irene não lembra mais de mim.

A protagonista de Zaime — Retratos de amor lembra da filha adotiva que cuida dela, no delicado momento em que a memória são fios perdidos num novelo emaranhado. A obra de Sônia Barros, de forma extremamente sensível, trata da dualidade do “maternar”, essa característica do feminino, de estar disponível física e emocionalmente para acolher e suprir as demandas de alguém, seja a filha ou a mãe. Organizada em diálogos de hoje e de ontem, a narrativa permite vislumbres e fragmentos de um todo maior, de uma história e de uma relação que não se pauta mais pela cronologia ou mesmo pela veracidade dos fatos, mas que se sustenta no afeto mútuo e na vida compartilhada.

[…]
ELA: Ah! E também não tenho Zaime, graças a Deus!
EU: Zaime? O que é isso?
ELA: Aquela doença que dá na cabeça, que o meu primo (fala nome e sobrenome) tem. Esquece que almoçou e quer comer de novo. Até briga se não dão comida pra ele!
EU (sem saber se rio ou lamento): É verdade, ainda bem que você não tem Alzheimer.
ELA: Eu já tomei café hoje?
EU: Já, acabou de tomar. Fiz ovo mexido pra você e dei abacate também. Você falou que estava tudo “uma delícia”.
ELA (olha bem pra mim): Se você está falando, eu acredito. Mas a pomada você ainda não passou no meu joelho! Faz tempo que estou pedindo…
EU: Acabei de passar! Veja como o seu joelho ainda está todo lambuzado de pomada.
ELA (passa a mão no joelho e não diz nada. Depois volta a me olhar): E o café? Faz tempo que eu acordei, quero comer alguma coisa.

Retomamos, então, nossa pergunta inicial: o laço com a memória seria o elemento narrativo determinante para situar na visita à casa da avó o fatal encontro com a vida? Ao criar sua nova velha história, Guimarães Rosa preserva a escolha dos autores anônimos da história milenar. Em Fita verde no cabelo, a menina não encontrará o sexo, e sim a morte da avó. No entanto, o cuidado com a vida é ainda predicado do feminino. A mãe da menina prepara a comida para levar à avó e encarrega a filha dessa tarefa. As mulheres, em grande parte, são as que acompanham a vida, ocupando-se do crescer, do adoecer e da morte. O entre. O breve-longo-intervalo a conduzir de uma ponta à outra.

Da república de sábios à república sem memória, nos deparamos com a urgente efetivação de novos paradigmas. Dentre outros, envolver a todos, sem exceção, nos cuidados com a vida e com a preservação da memória. Ler histórias, contá-las para as outras pessoas, mas sobretudo ouvir as histórias que essas pessoas trazem. Simples crônicas do viver, por vezes poemas inusitados, textos múltiplos, diversos, que carregam a busca do coração da verdade, essa dama bailarina, como diz Nietzsche, mas que não perde o prumo.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

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