O bater das asas da borboleta

Marina Colasanti tece a atuação de feminista, poeta e autora em vasto projeto, em que muitos são os textos ofertados à fruição de crianças e jovens
Ilustração: Maíra Lacerda
01/05/2022

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

Este texto é homenagem a uma autora que vem criança para o Brasil, e atribui a escolha do país a um episódio familiar banal, bem encaixado na teoria do efeito borboleta. Não fora o avô paterno ter vindo ao casamento da irmã, a família Colasanti, compreendendo as crianças Arduíno e Marina, talvez permanecesse na Itália ou escolhesse outro destino. Aquela que é hoje consagrada escritora revela em um “livro familiar”, dedicado à memória de Gabriella Besanzoni, tia-avó e responsável por lições de vida e arte à menina, os rumos tomados a partir dessa decisão. Se as manifestações estéticas pairam além do restrito conceito de pátria, mas compreendem as heranças advindas de uma e outra cultura em cujas fontes uma autora bebe, Marina traduz o legado clássico europeu, mas indica a perfeita inserção na cultura brasileira, manifesta no trabalho jornalístico e na atuação notável da escritora em variados espaços de produção.

Vozes de batalha pode ser lido como sequência de Minha guerra alheia, memórias da infância durante a Segunda Guerra Mundial e no meio de livros. Em ambos, a narrativa faz bem mais do que se ocupar com os relatos biográficos, descrevendo formas de pensar e de viver. A primeira obra citada deixa ver a jornalista à frente do texto, no detalhamento minucioso da ação interventora do Estado sobre a propriedade privada, ocasionando a destruição de um extraordinário trabalho empresarial. A admiração por Henrique Lage, em seu visionarismo e ação, e a crítica à dilapidação do país ao próprio patrimônio, humano e material, são patentes.

A voz de Colasanti chegou inicialmente ao grande público por suas crônicas e narrativas singulares, nas quais um imaginário reconfigurado trouxe frescor e conformação inédita à nossa literatura. Fadas, mas mulheres; mulheres, mas artesãs que tomam a existência em suas linhas mestras e bordam a trama do próprio destino. Em muitos de seus contos que crianças e jovens costumam ler, o ato de tecer é referência dominante, coerente com um momento de ressignificação do lugar e da ação da mulher na sociedade, no qual fazeres antigos sofrem apropriação oportuna. São inúmeros os textos publicados sobre esta nova mulher e a estranheza que inspira. A literatura propicia a articulação do ser híbrido, parte domável, parte não. Entre as folhas do verde O deixa ouvir o diálogo ainda impossível entre príncipe e mulher-corça: “Mas o príncipe tinha a chave da porta. E ela não tinha o segredo da palavra”.

O diálogo virá após numerosos ensaios, em processo de mútua educação, com evidência, porém, da certeza feminina quanto à direção e coerência do caminho, como se lê no conto Entre a espada e a rosa. Espírito sensível às questões contemporâneas e permanentes do ser humano, Marina retoma Orlando, de Virginia Woolf, Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e outras narrativas populares, para discutir travestimento feminino, transexualidade, afirmando a mulher como senhora do seu destino, tecelã do percurso que deseja. Hábil condutora de metáforas, elabora bem os finais envoltos em sentidos simbólicos, que costumam dar algum trabalho aos leitores e às leitoras. Autora de ensaios literários em que a recepção da leitura é bem abordada, ela “recebeu de volta” o próprio enigma narrativo, em um conto escrito e ilustrado por jovens leitores, em visita a uma escola pública municipal do Rio de Janeiro, nos anos 1980.

Nos principais volumes de contos, Uma ideia toda azul, Doze reis e a moça no labirinto do vento, Entre a espada e a rosa, encontra-se a sintaxe cultural de uma perspectiva ecológica e feminista: Além do bastidor, A moça tecelã, A mulher ramada têm em sua base a potência do fazer silencioso e determinado de tempos tão antigos, mas renovados. A jornada pode, no entanto, envolver emboscadas e entre espelho e fios acontecer prisão ou morte, que chegará em passos suaves, sem prenunciar sustos. Ao final, o quadro aterrador lá estará, imóvel na parede. “Eu corto grama de tesourinha”, disse a autora, em certa palestra, confessando o laborioso trabalho para chegar à perplexidade, que nos pega de chofre. O universo habitado por seres míticos, que permanecem no imaginário humano apesar de toda a evolução tecnológica, é um dos grandes trunfos das suas narrativas em prosa poética, inscritas no que há de melhor na literatura brasileira, e de que se pode desfrutar em Mais de 100 histórias maravilhosas, empreendimento editorial adequado à leitura do público adulto.

A história da formação visual da artista é contemplada em Vozes de batalha e o resultado se reflete na imagética com que ilustra muitos de seus livros. O ambiente dos contos clássicos, reproduzido em admiráveis gravuras em metal e em madeira, por vezes em aquarelas, evidencia um tempo que se faz desejado pela força de uma atmosfera. Histórias como Ofélia, a ovelha são recontadas, no manejo do material plástico a serviço de uma fábrica de narrativas, cujo exercício admirável pode ser constatado em Cinco ciprestes, vezes dois, em que os elementos são retomados e reorganizados em um segundo relato, lembrando ensinamentos de Italo Calvino.

A escolha pelos chamados contos de fada não exclui a crueldade presente no humano nem a justaposição das camadas significacionais. Uma ideia toda azul dá à criança a possibilidade de abrir uma janela, mais ou menos ampla, conforme as experiências de leitura. Na clareza de que arte tem por função comover e mover, originando emoção e empatia, Colasanti submete experiência e criação à gratuidade estética, sem transigir com essas condições, qualquer que seja a idade de quem lê. As crônicas e os poemas abrem-se, por sua vez, para um público mais experiente, enquanto as traduções abrangem O leopardo, de Lampedusa, As aventuras de Pinóquio, de Collodi, A pequena Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, entre outras.

Fiel às origens daquele avô historiador de arte que colabora, sem o saber, para o destino da neta ainda não nascida, Marina Colasanti tece a atuação de feminista, poeta e autora em vasto projeto, em que muitos são os textos ofertados à fruição de crianças e jovens. A menina vinda da Itália atingida pelos efeitos da guerra chega, aos 11 anos, no Rio de Janeiro, e considera, ao passar por uma demolição: “Aqui também houve bombardeios!”. O olhar original, adubado pela literatura, mantém-se viçoso, capaz de fazer aninhar na sensibilidade cenas da infância e juventude “recortadas a tesourinha”, no meio da grama viçosa do parque que Henrique deu à Gabriella, e, por meio de Marina, a todo o país.

O efeito borboleta é parte de uma teoria. Marina Colasanti é uma evidência na cultura e na arte brasileiras.

Vozes de batalha
Marina Colasanti
Tusquets
304 págs.
Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

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