Natal: uma memória para derrotar monstros

Livro sobre crianças desaparecidas é obra luminosa, atravessada pela luz do sol, dos vagalumes ou das lâmpadas domésticas, que se apagam a cada noite
Ilustração: Oliver Quinto
01/12/2024

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

Para a memória da menina Ágatha Félix, de 8 anos, morta em 2019 no Rio de Janeiro, por um policial, “que não teve a intenção de matar”, segundo o veredito do júri popular.

O nascimento de uma criança que, sendo humana, é também o filho de Deus, e vem ao mundo para resgatar a humanidade de seus desvios perversos, é o mito de maior força no Ocidente. Comemorado há pouco mais de 2.000 anos, impõe sua força ainda em meio a guerras, em momentâneas suspensões do conflito, para celebrar o sonho e a confiança da paz possível, tal como é representado em significativa produção narrativa. O Natal é a festa da infância em toda sua potencialidade, mas também na fragilidade exposta a seguir, com a morte dos inocentes ordenada por Herodes. Esse aspecto, devidamente sequestrado nas representações natalinas, não costuma sequer constar dos discursos religiosos específicos da festividade.

Essa morte dos inocentes — para exterminar o rei dos Judeus que acabou de nascer — não foi um privilégio do início da era cristã. Em clara condição de inumanidade ao longo da história, crianças têm sido parte do espólio de guerra. Herodes não inventou nada, afinal de contas. A era moderna, em seu aparato tecnológico e na arrogante ideia de progresso que carrega, não conseguiu estabelecer limites efetivos a esse procedimento típico da barbárie, contrário aos interesses de sobrevivência da própria espécie.

Mas celebra-se a infância, tanto quanto o Natal. Desde que as crianças não provenham de famílias cujos responsáveis alimentem pensamentos divergentes daqueles que ocupam o poder. Nesse caso, desconsidera-se o estatuto da infância em tudo o que política e legislação estabelecem. Acontece o que, no final do século 20, aconteceu bem perto de nós, documentadamente na Argentina e no Chile.

Crianças, de María José Ferrada e María Elena Valdez, inicia-se com a contextualização histórica do golpe de Estado no Chile, em 1973, responsável pela instalação de uma ditadura que se prolongou por 17 anos. A volta da democracia trouxe à luz o bárbaro número de mortos, entre executados e desaparecidos, entre os quais 34 crianças menores de 14 anos. Assim, as autoras se pronunciam:

 

Este livro é uma homenagem a essas trinta e quatro crianças chilenas, que nestas páginas brincam, sonham e escutam a voz de sua mãe. Porque isso é o que cremos que as crianças devem fazer. […] A elas, e à memória que nos permite derrotar os monstros, dedicamos este livro

Imaginação e memória são o tecido desta obra, feita de canções cujos títulos são os prenomes das crianças desaparecidas, dentre as quais mais de uma com apenas um mês de vida, outras com menos de um ano, várias com menos de cinco, e por aí vai, até os mais velhos com 13 anos. Conhecemos, dentre elas, Alicia, Jaime, Soledad, Hugo, Paola, Marcela, Luz, Lorena, Eduardo, Samuel e Macarena. Ao final, a grata surpresa de Pablo, que fez parte da lista até 2013, quando foi localizado vivo pelas Avós da Praça de Maio.

A barbárie pede ações de contenção na resistência, pede reparação por meio dos relatórios jurídicos e julgamentos legais. Pede justiça ainda nas obras artísticas que vão denunciar as condições inumanas vividas no período de exceção. Como denunciar, porém, o inumano a crianças na faixa de idade das protagonistas dessa história? Na consciência e responsabilidade de que não se pode deixar de fazê-lo, a poesia será um dos caminhos mais felizes. Por meio dela, qualquer futuro é agora e a vida vinga, vitoriosa e plena.

Elizabeth
Hoje ela seria a professora
e faria perguntas a seus alunos:
um urso de pelúcia e uma boneca.

De onde saiu o amarelo?
a. Saiu escorrendo do pote de mel.
b. Saiu do campo de girassóis.
c. Apareceu no céu em forma de círculo.
d. Todas as anteriores.

A vida se ancora nas ficções, na confiança das verdades criadas no imaginário, alimentando o desejo humano em sua busca de felicidade, contemplada na inevitável dimensão do sonho.

Francisco
Depois de ler pela segunda vez A ilha do tesouro, está seguro:
os piratas nascem para encontrar uma ilha
com coração brilhante.

O tom elegíaco orienta apresentação e posfácio, mas os poemas são “a laranja brilhando no bolso” de Rafael, que demorou uma hora para descobrir semelhanças entre o sol e uma laranja. Descobrir é o conceito estruturador desta obra. E não poderia ser de outra forma, ainda que a criança saiba (ou não) que está a lidar com o medo e a perda, a construir sentido para o sem-sentido. Texto verbal e texto visual encarregam-se da leveza, nas imagens poéticas líricas e provocativas, na ilustração delicada, grafite, lápis de cor e aquarela. A fluidez pousa no papel, representa o frágil e o concreto, a luz que vaza pelo manto velho cheio de buracos e gera a luz das estrelas, o miúdo e inapreensível mundo dos insetos, da vida escondida no seio da terra ou o medir do tempo por vias naturais e nem sempre perceptíveis aos descuidados. Mas as crianças costumam ter a sensibilidade adequada para a linguagem dos ciclos naturais, como observa Carmen:

(A macieira é um relógio
que cresce sobre a terra.
Em lugar de dar as horas dá estações. Hoje é outono).

Carmen escolhe dizer do outono, outras crianças, porém, são todas primaveris. Broto, flor, renovação. O inverno não aparece, a noite é um repouso e acalenta mistérios que pedem admiração e não sustos. As revelações sobre o mundo, o barulho do mar que vive nas conchas, fato anotado por Héctor em sua lista de enigmas, a água da chuva recolhida em um balde, que pode permitir a Marco fazer, quem sabe?, um mar. Uma tarefa arrojada e possível. Porque se a lua cabe num copo d’água … há um céu dentro dos copos, ajuíza Nelson, nos dois anos que foram permitidos a ele viver. José, que viveu até os treze, inventa seu próprio dicionário.

Inconcebível naturalidade: ler, ao final dos poemas, os nomes das crianças, a informação executada ou executado, o ponto e vírgula marcando pausa para a idade em que o fato ocorreu. E, no entanto, é um livro luminoso, atravessado pela luz do sol, dos vagalumes ou das lâmpadas domésticas, que se apagam a cada noite, “como pores de sol,/ vagalumes,/ pequenos faróis”, considera Susana. Palavra e traço levantam no ar a confiança emprestada ao nascimento da criança que veio para ensinar ao mundo nova forma de viver, na qual, dentre outros itens, figuram a força da palavra e a radical ideia de igualdade entre as pessoas. Nesse legado, os inevitáveis monstros, mais cruéis do que aqueles que habitam nossa imaginação, temem o poder que os neutraliza e dissolve: a memória.

Neste Natal, dê Memória de presente às crianças. Num livro ou num relato encarnado pela presença de afeto e testemunho.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

Rascunho