Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda
Criança precisa ser levada a sério. Tal o pensamento ético e a realização estética de Sylvia Orthof, uma das mais importantes autoras brasileiras. Sylvia faria 90 anos em setembro passado, e o momento pedia um projeto de reedição, marcado pela diversidade: teatro, poesia, conto, crônica. Importante tarefa crítica e editorial, zelar para que obras de valor mantenham-se em catálogo, em apresentações para diálogo com novas gerações de leitores, sustenta o vigor de uma cultura. Os primeiros volumes dessa reedição chegam em boa hora.
Mas como íamos dizendo, Sylvia enxergava a criança como um ser-em-si. Considerava primordial esse reconhecimento e reclamava a atenção a ser dada na medida das incompreensões, dos sofrimentos e dos júbilos possíveis nessa etapa da vida humana, não cabendo qualquer perspectiva de infância idealizada. “Dizer que criança é angelical é mentira pura”, afirma em Se a memória não me falha, de 1987, obra do gênero memória, de extrema relevância no conjunto de sua produção. A faculdade de armazenar e de evocar fatos vividos, uma das capacidades que melhor nos define enquanto humanos, é regida pelo afeto e pela seleção; produção subjetiva, portanto, é contestável na pretensa condição de verdade. O título do livro vem de expressão empregada amiúde, como ressalva de algum equívoco involuntário. Ao longo das “coisiquinhas curtas, com verdades e fantasias, saltos no tempo” que o compõem, a veracidade da memória é posta em questão, de forma saudável e autêntica: “não me lembro ao certo”; “Ficou de tudo isso uma lembrança diferente para cada um”; “Acho que era assim, talvez esteja confundindo”. Criança, jovem, adulto, todos vacinados contra a terrível corrosão de uma certeza inabalável, ao se tratar de reminiscência evocada.
É assim que em meio à vivência familiar, incluindo comemorações da Heilige Nacht pelo nascimento de Cristo, e sem que haja oposição dos pais ao ingresso da menina no catolicismo, irrompe súbito a espantosa revelação:
— Mãe, mais que coisa fantástica, me diga: nós somos judeus?
— E você, Sylvia, agora, depois de tanto tempo, vai fingir que não sabia?
E mamãe saiu da sala, indignada […] Nunca me haviam explicado! Realmente, na minha percepção infantil, algo estava fora dos eixos, mas eu não sabia o que era. Foi assim que, apesar de judia, minha avó chamava-se Clara Golberg, lógico, eu me tornei católica apostólica romana e tive um nó na cabeça, para sempre.
Ninguém perdeu, diríamos. Pois a miscelânea cultural e religiosa resultou não só em uma síntese ecumênica formidável “… resolvi o problema: sou judia católica e pronto”, como em raro volume de poemas. Pequenas orações para sorrir traz a poeta em situação bem franciscana, rezando para o que nos rodeia, para o Menino Jesus, para os santos, dentro da mais profunda Fé: “Ninguém me tira/ essa bagagem/ que mora dentro/ da oração”.
A falta de clareza sobre a própria condição, de que a menina foi vítima e é tão comum, revela o status da criança, que sofre consequências de condições o mais das vezes desconhecidas e alheias à sua vontade, e de cujo esclarecimento costuma ser alijada. No fundo, o que se dá é a falta de respeito para com a infância, erguida sobre a lógica de que é inútil explicar, criança não entende. Tal atitude, manifesta por silêncio, mentira ou meias palavras, gera a lúcida reação infantil: “Pois é, criança conhece mãe. A gente nem sempre pode confiar! Até hoje, tenho pavor de injeção […] sei que dói…”. As mães mentem. Dizem que não vai doer, quando sabem que vai. Enganam, por não terem coragem de usar clareza e argumento, ou de reconhecer os paradoxos de que a vida é feita. Para quem faz literatura, essa consciência precisa conduzir à decisão sobre o investimento devido, se na denúncia indignada, se no humor reparador, ou se em rara combinação de um e outro.
Nenhum elemento crítico é mais contundente que o humor, tomado pela autora como eixo estruturante de sua expressão. Sem constrangimento, a judia Sylvia pediria uma mãozinha ao colega Sigmund Freud para atestar ser esta uma das “operações psíquicas mais elevadas”, “um dom raro e precioso”, um “recurso para auferir prazer” diante “dos embates da vida e da trágica inevitabilidade da morte”. Frente ao inexorável poder de pai e mãe e outras autoridades, que resta à criança senão embaralhar-se pela linguagem, nos jogos que garantem uma liberação ainda que momentânea para o prazer? Não uma via de escape, exatamente, mas uma fresta por onde a subversão faça valer a teoria da relatividade.
A limpeza de Teresa, Pomba Colomba, Um pipi choveu aqui, Os bichos que tive (memórias zoológicas) são algumas das obras em que o real é subvertido, provocando riso e liberando o indivíduo de situações opressivas. O nonsense, a falta de sentido apontada nas ações das personagens, leva o mundo a uma situação de ponta-cabeça, abrindo ângulos de visão inusitados, tal como ocorre em Mudanças no galinheiro, mudam as coisas por inteiro. O sol fica resfriado, não pode trabalhar. A lua precisa ficar no céu por dois dias seguidos, o que desorganiza o mundo, produz novos discursos e gera outra ordem, em que as subserviências são abolidas.
A potência da linguagem é um dos aspectos de revolução na obra de Orthof, que explora o absurdo, lugar no qual o peso demasiado das circunstâncias pode desaguar no humor, burla ao limite extremado e garantia de sobrevivência psíquica. Na maior parte dos volumes de sua vasta obra (o escritor Luiz Raul Machado atesta serem quase 130 volumes), a capacidade de expor o absurdo das convenções, de identificar o ridículo e quebrá-lo em sua constituição, soma-se à coragem de seus questionamentos, impondo-se como preciosos legados da autora. Movendo-se entre fada e bruxa, oscilação natural do humano, e na decência de expor uma vida com acertos e desastres: “a gente não é feita só de qualidades”, Sylvia considera que “na alma, a gente não envelhece”, e o olhar fresco para o mundo vem alimentar a poesia, trabalho de Penélope, por ela desvelado em Ponto de tecer poesia.
No palco ou na página, Sylvia se equilibrava entre a irreverente consciência do ofício e o cuidado com recepção do fruto do seu trabalho. Com tal clareza, encerra uma discussão importante: “Este livro foi escrito para adolescentes. As editoras andam querendo textos para jovens. Eu acho que isso não existe e, se a memória não me falha, já falei nisso. Livro para jovens, ou livro para adulto, é tudo o mesmo. Vale, se for bom”.
Em tempos de mercado como agente determinante para todos os elementos da vida, de controle extremado de leituras, de pedagogias hipócritas e opressoras, a obra de Sylvia Orthof reafirma-se raro hino à inteligência da criança e total respeito por sua condição.