Migrar: uma poética dolorosa

A literatura é também espaço de acolher e mediar o tema das migrações, cada vez mais complexo e de difícil solução
Maíra Lacerda (Colagem a partir de ilustrações de Issa Watanabe, Mariana Chiesa Mateos e Shaun Tan)
01/01/2022

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

no quiero que paren a mi padre
no quiero que lo deporten

“american dream”
Leonardo Tonus

Inerente à vida animal, migrar é um ato de deslocamento que implica mudança radical, temporária ou não, de condições de vida. Animais costumam migrar em função das mudanças sazonais, por escassez de recursos alimentícios ou por disputas territoriais. O ser humano, em geral, adapta-se ao clima, mas migra também pelas outras razões, dentre as quais as guerras costumam ser as mais habituais. No século 21 essa situação se intensifica e diversifica: entre refugiados, deslocados e migrantes, os estatutos jurídicos diversos não amenizam a condição de ser obrigado a “ir para outra parte, emigrar, mudar de moradia”.

Quase um século depois do que retratam Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e outros, a migração interna ocorrida no Brasil por conta do assim denominado fenômeno da seca, que disfarça violento e secular conflito social, não alcança equação devida e pode ser vista, com novas tintas, por toda a América Latina; os noticiários trazem cenas pungentes e diárias de retirantes, desplazados, obrigados a deixar suas casas, suas terras, em busca tão-somente de sobrevivência. El mordisco de la medianoche, de Francisco Leal Quevedo, retira a história de uma família desse vasto anonimato. Ao substituir a fome por ameaças criminosas locais, como causa determinante da fuga, o autor traça o retrato de uma Colômbia contemporânea, expondo os problemas enfrentados, das dificuldades comuns a tais deslocamentos à nostalgia pela perda do campo e à hostilidade urbana.

A literatura é também espaço a acolher e mediar o tema das migrações, cada vez mais complexo e de difícil solução, por isso mesmo presente no que denominamos poética do mal-estar. Situam-se aí os assuntos considerados polêmicos, matérias espinhosas, assinaladas por um pensamento conservador e reacionário como perigosas à infância e à juventude. Essa forma de controle sobre a leitura sequestra, como sempre o fez ao longo da história, a condição de sujeitos aos leitores, deixando-os em situação de passividade sobre circunstâncias que a arte ajudaria a discutir. Felizmente, nesse e em outros campos, os livros ilustrados vêm ocupando uma posição capital, em oportuna vanguarda ética e estética, tal como fazem o colombiano Jairo Buitrago e o peruano, radicado na Colômbia, Rafael Yockteng.

Em Eloisa e os bichos e Para onde vamos?, os autores alcançam apresentar a perspectiva infantil, em hábil manejo da articulação entre o verbal e o visual. Na primeira obra, as imagens de insetos gigantescos rodeando a menina e a afirmação dela em se sentir “um bicho estranho” como única pista textual provocam a partilha com o leitor do estranhamento da criança: seria aquele um mundo fantástico? Outro planeta? Tal como na obra A chegada, do australiano Shaun Tan, a solidão da personagem em meio a seres tão insólitos possibilita indagações, e a revelação da ilustração final abre perspectivas para avaliarmos as consequências do deslocamento para além da compreensão infantil. Em Para onde vamos?, que narra as peripécias de uma viagem a partir da visão da criança, a disjunção entre conteúdo textual e conteúdo imagético, que muitas vezes passam informações conflitantes, instiga uma percepção aguçada da leitora e do leitor. Detalhes da ilustração propiciam a construção adequada de sentidos para contextualização da jornada de pai e filha e possibilitam reflexões sobre a dura realidade dos que recorrem à imigração ilegal.

Em exemplo que aborda a temática de forma direta, inclusive em seu título, Migrantes, da peruana Issa Watanabe, apresenta, em narrativa silenciosa, a perigosa travessia empreendida por um grupo de viajantes, sempre acompanhados pela figura enigmática de um ser que podemos supor como a Morte — em uma interlocução com a representação realizada por Wolf Erlbruch em O pato, a morte e a tulipa. Com personagens retratados por animais antropomorfizados, das mais diferentes espécies, o sofrimento se mostra presente a cada página, a cada perda experimentada pelo caminho. Por sua vez, Migrando, da argentina Mariana Chiesa Mateos, entrega na mão do leitor e da leitora um produto para ser manipulado e folheado por todos os lados. Com narrativas distintas, mas complementares, que se desenvolvem a partir das suas duas capas, entregando dois pontos de partida e múltiplas chegadas, o livro de imagens se debruça sobre diferentes aspectos dos processos migratórios. Desenvolvida em colaboração com a Anistia Internacional, a obra se desloca no tempo propiciando reflexão a respeito do migrar de hoje e de ontem, trazendo para suas páginas a própria história de vida da autora, filha de europeus que vieram para a América do Sul, que em movimento inverso volta à terra dos seus antepassados e de lá observa outras migrações, tratadas de forma bastante distinta.

Se as cenas de naufrágios de embarcações precárias repletas de pessoas fugindo de guerras costumam impactar a opinião pública, a situação dos campos de refugiados, tão dramática quanto essas, não costuma ter a mesma sorte. “Uma história ficcional sobre a vida real” traz as vidas de Geedi e Deng, Dois meninos de Kakuma, de Marie Ange Bordas, artista de múltiplas faces. Ilustrada com fotografias e pequenas intervenções gráficas sobre elas, a obra relata o cotidiano de um dos maiores campos de refugiados do mundo, que em 2018 contava com 200 mil pessoas. Criado há quase 30 anos, “Kakuma é de todos e não é de ninguém”, numa experiência de não lugar, sem fornecer passaportes a seus habitantes nem permitir a eles o direito de ir e vir.

Para o protagonista Deng, “é estranho pensar que vivemos isolados neste deserto e que nossos futuros estão nas mãos de pessoas desconhecidas que vão decidir por nossas vidas, resolver se o campo fecha ou permanece […]”. A potência de vida da infância e da juventude sensibiliza leitoras e leitores, a perspectiva crítica dos dois personagens empresta coragem para sustentar a confiança em uma solução justa. O desejo de um futuro, próprio do ser humano, e negado aos que estão em Kakuma, lateja nas falas das personagens.

Se essas e outras obras trazem ao leitor poéticas dolorosas, trazem também questionamentos necessários, possibilitando a formação crítica do leitor e a intervenção na realidade por meio da arte, ao debruçar-se sobre a experiência humana. Leonardo Tonus nos emprestou seus versos como epígrafe; dele vem igualmente o olhar de confiança com que se encerra este artigo. Na dedicatória de Diários em mar aberto, o texto é escrito e riscado, em movimento ambivalente de amarga constatação e confiante restauração. No pulso constante do destino humano, a possibilidade de nova escrita para fatos desastrosos é própria da literatura.

“a nós que/ não cessamos de nos tornar mais humanos” (No original: “à nous qui/ ne cessons de devenir plus humains”)

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

Rascunho