Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda
Anna Cunha e Alexandre Rampazo partem, como todo artista, de suas premissas estéticas para aventurar-se em indagações, das quais, em obras recentes, destaca-se a designação obrigatória de obra infantil para o livro ilustrado ou o livro com ilustrações. Em declaração próxima ao lançamento de Origem, Anna Cunha observa que obras como essas têm duplo receptor: lidas por crianças, mas também por adultos, que muitas vezes as compram para o próprio prazer. No lançamento de coisas para deslembrar, de Rampazo, realizado à mesma época, houve frequentes alusões ao conceito de livros sem idade.
Em discussão realizada por artistas e pesquisadores em seminário na Universidade Federal Fluminense, em 2012, cujo resultado foi publicado na obra Esses livros sem idade, em 2018, mostra-se de forma inconteste que a perspectiva da fruição independe de idade cronológica ou de dados eventualmente relacionados a essa condição: textos longos para adultos, medianos para jovens, curtos para crianças. Igualmente, a presença de ilustrações como definição do livro infantil revela concepção equivocada. O advento da imprensa não aboliu o uso das iluminuras no códice, na permanência do diálogo da representação visual com a verbal até os dias atuais. A experiência dos Cem Bibliófilos do Brasil, em que artistas visuais conceituados eram convidados a ilustrar clássicos da literatura brasileira, gera uma coleção de inestimável valor, ao alcance apenas dos membros da confraria, adultos, todos eles. A presença de ilustração, pensada enquanto linguagem, pode enriquecer e ampliar a experiência de qualquer leitura literária. Ao acompanhar textos que também podem ser lidos por crianças e jovens, muitas vezes proporcionam a criação de objetos-livros que escapam às classificações habituais, em expansão do seu público leitor.
Movendo-se por caminhos singulares e bastante significativos na produção contemporânea, Rampazo apresenta trajetória consolidada como escritor e ilustrador, enquanto Cunha inaugura esse lugar de dupla autoria. Ao tomar narrativas mais próximas à compreensão infantil como ponto de partida, o primeiro constrói uma obra de empatia com as questões do sujeito criança, adensando-as de forma progressiva, alcançando problematizações instigantes, já não mais destinadas à infância de forma exclusiva. Por sua vez, Anna Cunha se fez conhecer no mercado por meio de produtos gráficos variados que cultivam uma poética da ilustração, com especial atenção à infância.
Origem é o debruçar da artista sobre o nascimento do imaginário, no início do tempo, em uma paleta de ocres e cinzas, laranjas e marrons, vinhos e brancos. A obra toma o labirinto, a errância e certa obscuridade como matrizes, e faz clara menção às representações na caverna de Lascaux, na exposição de um tempo que buscava nominação e representação, expressão e domínio do real. Com ilustrações que ampliam constantemente a interpretação possível de seu texto, a artista nos leva a refletir sobre a vida, em seus mais amplos aspectos. A partir da ideia da semente, no “grão ainda por rebentar” mencionado em seus versos, as imagens nos apresentam uma maçã cortada ao meio, seguida de uma mulher com o ventre preenchido pela noite, com a lua e as estrelas sendo gestadas em seu interior. Sementes distintas, mas que carregam em si o mesmo poder vital, e se ramificam em galhos e raízes, em questionamentos sobre a existência e a construção da cultura.
A linguagem poética que se apresenta no texto e também nas imagens constitui uma leitura composta em camadas, preenchidas e complementadas pelo sujeito que folheia esse objeto. Em texto e imagem, tempo e criança confundem-se em sua infância, rompendo a dicotomia dos elementos, na instauração do ciclo do eterno retorno, tão bem sintetizado na figura de Ourobouros, a serpente que morde a cauda, em seu contínuo movimento de gerar e devorar.
Encontramos também outra espécie dessa serpente no livro de Rampazo, cuja capa apresenta traços em branco, uma fita corretiva sobre o que deveria ser o título, que aparece na folha de rosto, desfocado e fragmentado. Como primeira ilustração, uma mulher idosa, de costas para a leitora, contempla fotos emolduradas, presas a uma parede. A página ao lado é tomada por um texto, do qual se leem pouquíssimas palavras, “lembrar ou reviver” e “uma história”, dentre elas; todo o resto está apagado por rasuras, traços de um marcador preto que tornam a leitura impossível, como parece evidente ser impossível para a mulher relembrar as cenas que contempla.
Na sequência das páginas à esquerda, a personagem observa uma foto de cada vez, enquanto à direita, mais palavras vão se desvelando. Em seus dois planos, visual e verbal, a narrativa avança; lado a lado, avançam também mulher e leitora. Entre ver e relembrar, o texto se encorpa pelo reatar do fio da memória, esta faculdade delicada, vital e construída. Carl Gustav Jung alude a uma memória da raça, um inconsciente coletivo inerente à comunidade humana, forjado naquele tempo sobre o qual Anna Cunha se debruça. Assim, mitos, arquétipos e símbolos usufruem de uma origem comum a toda a humanidade, mas a memória de cada um é construção pessoal, transferindo-se a outrem por meio de narrativas geradas por quem as viveu, ou imaginou, em variados meios de expressão.
Como organismo vivo, esse material sofre intermitências. A infância, tempo de construir linguagem e levantar a memória como árvore que vem do chão, entra em diálogo com a velhice, tempo de desaprender palavras, e assistir ao desfolhar da árvore. Na obra de Rampazo, a foto central, encoberta todo o tempo pela mulher de pé em frente a ela, é descoberta próximo ao final. Ao lado, o texto verbal revela o estranhamento de quem embaralha impressões entre o sono e a vigília, entre saber e duvidar, fronteira demarcada pelos mesmos traços pretos, que, junto ao branco e ao cinza, constituem a base da sóbria paleta utilizada.
A epígrafe escolhida por Anna Cunha traz a voz de Bartolomeu Campos de Queirós, na convicção do tempo como experiência viva e fundadora da memória na infância, que o autor tanto se ocupou em registrar. Fernando Pessoa empresta versos para indicar confusão e deslembramento na narrativa de Alexandre Rampazo. Em Origem, a hospitalidade da arte mostra-se na imagem final da narrativa, posta depois dos créditos, convidando ao início depois do acabar, ponto cego de todo fazer, acontecendo entre a matéria-plasma, o sopro da água e a criança, porque “O princípio é a sede. Raiz procurando o mar”. De forma semelhante, em coisas para deslembrar, a última frase revela, tanto quanto a confiança no futuro, a certeza de que existe alguém a ouvir, patente na confidência “Eu tenho uma história incrível pra contar”.
Duas obras memoráveis, testemunhos plásticos de alta qualidade, nos vêm de uma artista e de um artista de traço e de palavra. Cunha e Rampazo abrem, na literatura brasileira para fruição de leitores sem idade, indagações e caminhos por este tema onipresente no século 21.