Lygia Bojunga: a face polêmica

Literatura se faz da falta, da busca interminável de sentido para a vida, com tudo o que traz de desespero e deslumbramento
Ilustração: Maíra Lacerda
01/06/2023

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

O pescador contava umas histórias maravilhosas, boas de ouvir que só. A Morte andava a cavalo por aquelas paragens e gostava de galopar, deixando um vento forte atrás dela. No coqueiral, tinha uma folhagem rasteira que dava uma flor azul. Uma flor bonita, grande, que guardava dentro o Amor. A morte adorava a Flor e bem de longe ainda ordenava ao cavalo: “Não pisa naquela flor, que ela é minha”. Rafaela perguntava à Mariana se as histórias do pescador eram verdadeiras. Ao saber que não passavam de imaginação, ela foi colher a Flor Azul. Mas, aos poucos, se mostrará à menina a força e autoridade da narrativa que ouvira.

Sem necessidade de relembrar que somos seres simbólicos e hóspedes da permanente perplexidade, é bom atualizar que literatura se faz da falta, da busca interminável de sentido para a vida, com tudo o que traz de desespero e deslumbramento. Todavia, demandas sociais contemporâneas, entre as quais as formas líquidas do viver identificadas por Zygmunt Bauman, têm conduzido, em campos variados, ao consumo efêmero dos objetos, do cotidiano e também das obras de arte.

No caso da literatura, é comum encontrar enorme quantidade de produções descartáveis, atendendo ao apelo do momento. As gerações mais jovens vivem na esfera do imediatismo, o que é todo o contrário da literatura, manifestação que se funda na experiência, para a qual são necessários tempo e introspecção. Literatura permite vislumbrar liberdade, contemplar o abismo. Movidos pela emoção, vemos as personagens, perdidas em sua hybris, seu desequilíbrio, submeter-se ao julgamento e à penalidade devida. Édipo — para sempre. Enquanto formos humanos.

Lygia Bojunga tem obra franca e corajosa, antecipando-se às abordagens da Coleção do Pinto, publicada nos anos de 1980, por André Carvalho, na Editora Comunicação. A coleção lançou obras-primas de nossa literatura, como O menino e o pinto do menino, de Wander Piroli, Xixi na cama, de Drummond Amorim, Cão vivo, leão morto – Era apenas um índio, de Ary Quintella, Pivete, de Henry Correa de Araújo, dentre outras. Alguns dos temas abordados na coleção iriam se tornar banais, em consequência das revoluções comportamentais em curso; contudo, já em 1972, com a publicação de Os colegas, Lygia trazia várias dessas questões, e outras que ainda são consideradas controversas. Feminismo, organização política, luta contra a injustiça social são os eixos temáticos da obra que aponta de forma decidida para a importância da arte como espaço de elaboração das complexas questões humanas.

Ao abordar a face polêmica de sua obra, é preciso conceituar o que são os temas delicados, fraturantes, ou, como preferimos, polêmicos. No Houaiss, polêmica é “discussão, disputa em torno de questão que suscita muitas divergências; controvérsia”. São polêmicos temas como violência, corrupção, sexo, morte, racismo, misoginia, suicídio, religião. Nessa condição, costuma-se restringir sua presença junto a leitores na infância ou na juventude, mas não junto a adultos, na medida em que a natureza da literatura é a própria comunicação do abismo humano.

Abismo que Rafaela enfrentou, sem qualquer aviso ou proteção, ao ver assassinado o amigo, por quem, tão menina ainda, se sentia apaixonada. Em meio a diálogos magistrais, a narração expõe o clima natural, violento e passional da vida, que culmina com um crime. Com uma delicadeza radical, Nós três expõe a solitária perplexidade da criança sobre o que ocorre.

Semelhante perplexidade atinge igualmente o pequeno protagonista e narrador de Meu amigo, o pintor. Cláudio se vê no desconsolo da morte de um grande amigo. As respostas sobre a causa dessa morte são contraditórias ou incompletas, “morreu […] que nem todo mundo um dia morre”. Ao precisar compor sozinho o quebra-cabeças à sua frente, terá que lidar, sem auxílio, com as perguntas cruciais:

Então tinha sido mesmo uma morte de propósito, mas por quê??
E por que quando é assim todo mundo faz mistério? e fala baixo? e fica até aparecendo que suicídio é palavra feito palavrão: por quê?!

Em ambas as obras, mostra-se a potência do espaço onírico como organizador de conflitos, em atenção à ética que o indivíduo, em formação, mas pleno como ser, busca, enquanto humano. Todavia, há que considerar a inumanidade, também uma figuração possível. Nela, o Mal é soberano, o outro inexiste enquanto ente a ser respeitado. Tais os pontos centrais de Seis vezes Lucas e O abraço, de 1996. A figura de um pai cruel, sádico, e a cumplicidade da mãe, por omissão e passividade, fazem de Lucas um ser fragmentado, na primeira obra; na segunda, o foco está na atração da personagem central pelo indivíduo que a teria estuprado aos oito anos. A força do Mal não é negada ou escamoteada, mas reconhecida e deixada à elaboração da leitora.

Essa leitora que deve, como fez Maria, em Corda bamba, abrir cada porta de sua história e revisitar o que aí se encerra, para poder construir a vida em sua nova perspectiva e seguir em confiança nos caminhos que escolhe. Escritora responsável pela formação de uma geração, ou mais, Lygia Bojunga fornece esteio a uma mentalidade, cujos pilares são independência feminina, franqueza, coragem política, indignação social. A bolsa amarela segue como emblema de uma infância que se lança à juventude mais livre quanto à forma de ser/estar no mundo e fortalecida nos desejos de vida futura.

Formado e atendido este público, Bojunga volta-se para o jovem adulto. Retratos de Carolina, Aula de inglês, Sapato de salto, Querida configuram-se com as permanentes linhas de força da autora: conflitos existenciais, sexuais, amorosos; prostituição infantil, adulta e a presença do duplo, ou máscara.

Sem panfletarismo e sem abandonar a confluência entre ética e estética, a autora não se furta a tratar desses temas considerados polêmicos, na visão de muitos dos que pretendem determinar o que crianças e jovens devem ou não ler em literatura. A onda iniciada ao final do século passado e que grassa hoje de forma perigosa, caldo de obscurantismo, fundamentalismo e controle político — responsável por expurgos de obras de bibliotecas e escolas — é séria ameaça à liberdade individual e coletiva. Compreender o relevo dessas obras e sua essencial presença na cultura brasileira é permanente e ininterrupta tarefa, em que clarividência e coragem somam-se uma à outra.

No quadro que ainda se possui, a Educação acaba sendo, com raras exceções, o espaço acolhedor dos estudos de literatura para crianças e jovens, o que acaba reforçando visões analíticas externas ao campo literário. A clarividência da tarefa que se aponta implica em retirar adjetivos da literatura, como preconiza María Teresa Andruetto, reconhecer que literatura para crianças e jovens é literatura ponto. Assim dizem as Cartas do São Francisco: conversas com Rilke à beira do rio, e faz Lygia Bojunga. O prêmio Hans Christian Andersen, recebido pela autora em 1982, ratifica a importância da leitura de suas obras, não só, mas também por crianças e jovens.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

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