Lugar de mulher é nas biografias

A leitura de biografias pelas crianças e pelos jovens é de grande importância, pois as vidas retratadas costumam apontar caminhos inovadores e generosos
Ilustração: Maíra Lacerda
01/02/2025

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

O gênero biografia é antigo na literatura. Encontrar vidas efetivamente vividas e que podem ser tomadas como modelos a seguir, pelo legado deixado à humanidade, é forte estímulo para as leitoras e os leitores. De quebra vem o tempo, necessária moldura para a devida contextualização histórica e base para avaliação das particularidades. Todavia, uma característica que marcou o gênero até não muito tempo é a ausência de biografias femininas nas prateleiras das estantes, salvo uma ou outra figura de indiscutível destaque. Essenciais nos bastidores, as mulheres não apareciam em cena, que ficava entregue ao gênero masculino. Podemos lembrar a famosa foto dos participantes da Semana de Arte Moderna, de 1922, em que apenas os homens se fazem presentes. As mulheres estavam lá, mas não eram visíveis.

As mulheres sempre estiveram nos lugares em que estão hoje. Antigamente em proporção muito menor, é claro. A estrutura patriarcal da sociedade sempre impôs limites à atuação feminina, mas estes sempre foram transgredidos na constante busca das mulheres por ampliar suas possibilidades. Roger Mello nos lembra a primeira mulher filósofa e poeta, Enreduana, filha do rei acádio Sargão I, a quem ela diz: “Meu rei, algo foi criado, algo que ninguém criou antes”. Refere-se à invenção do sujeito lírico, o eu, presente em Senhora de todos os me’s, poema de sua autoria em exaltação à deusa Inanna. Embora o poema tenha sido escrito no século 23 a.C. , o nome da autora ficou apagado, na deliberada rasura da atuação feminina na história. Em Enreduana, o texto verbal de Mello e as ilustrações de Mariana Massarani desvelam para a infância a existência e importância de figura tão singular e potente, tal como fazem também em Inês, biografia ficcionalizada de Inês de Castro, um dos mitos fundadores da cultura portuguesa.

A leitura de biografias pelas crianças e pelos jovens é de grande importância, na medida em que as vidas retratadas costumam apontar caminhos inovadores e generosos, trilhados por pessoas que não são super-homens nem mulheres-maravilha. Acompanhar as vidas reais, incluindo suas infâncias e juventudes, é um estímulo salutar para intervenções no mundo. Conhecer vidas femininas, em geral apagadas socialmente, permite reconhecer diferentes lugares ocupados pelas mulheres, contribuindo para a desconstrução de um imaginário de hegemonia masculina.

A história de Malala Yousafzai, a jovem afegã baleada por membros do Talibã por defender o direito feminino à educação, repercutiu de forma intensa à época de sua publicação. Textos ficcionalizados ou com tratamento biográfico tornaram próxima a figura real de uma jovem em movimento para transformar o mundo ao seu redor. Do mesmo modo, as variadas ações que têm se empenhado em evidenciar o papel das mulheres e de outros participantes de minorias sociais têm proporcionado bons resultados em termos de mudança de mentalidade. Carolina Maria de Jesus, mulher negra e pobre, moradora da favela e mãe dedicada, conta com duas biografias que crianças e jovens também podem ler. A obra Carolina, de Sirlene Barbosa e João Pinheiro, apresenta na estrutura de história em quadrinhos a trajetória da escritora e poetisa, partilhando suas escrevivências:

Carolina sabe: uma palavra escrita não pode nunca ser apagada. Não é difícil imaginá-la em seus últimos dias, revendo sua própria odisseia.
— A arte mais difícil é a arte de viver.
(…)
Meu desejo é sucumbir com as agruras da vida quando os filhos vêm pedir mamãe! quero comida.

Em Meninas, obra de Amma e Angélica Kalil, encontramos pequenas biografias, também em história em quadrinhos, que trazem infâncias de dez brasileiras com destaque em suas trajetórias. Ao expor fatos do cotidiano das crianças que vieram a se tornar mulheres de referência em diferentes áreas, os relato das “meninices” do passado visam oferecer inspiração a meninas — e também a meninos — do presente a reconhecerem futuros possíveis. Com a característica do próprio gênero, imagem e texto, organizados em espaços compartimentados, se entrelaçam no desenvolvimento dessas histórias, desenroladas sempre a partir do ponto de vista infantil. O projeto prima pelo dinamismo, em exibição de vivências diversificadas, seja pelo período histórico, pelos contextos específicos ou pelas inclinações pessoais de personalidades como Maria Lenk, Ruth de Souza, Chiquinha Gonzaga e Pagu.

Ao apresentar essas meninas e evidenciar, pelo recurso dos balões de fala, a voz delas, o livro oferece aos leitores o reconhecimento dos diferentes lugares de ser mulher, alguns ocupados pela primeira vez por essas personagens. Tal perspectiva orienta Bertha Lutz e a carta da ONU, em que as autoras citadas anteriormente juntam-se a Faw Carvalho para a construção de outra narrativa em HQ de uma vida feminina memorável. A participação da cientista e líder sufragista na comissão brasileira enviada à Conferência de São Francisco, que deu origem à Organização das Nações Unidas, é relatada na obra a partir das reminiscências escritas pela diplomata, que se encontram em versão completa no pós-textual.

Mas não apenas de quadrinhos são feitas as biografias. Em O pulo do gato: um encontro com Nise da Silveira, o leitor vem a conhecer a psiquiatra alagoana por meio de um relato do autor Claudio Fragata, no qual é retratado o processo para realização de entrevista com Nise a respeito do seu método revolucionário de tratar pacientes com transtornos mentais por meio das artes e do contato com animais. Em tom descontraído e estrutura próxima a uma crônica, o livro tem ricas colagens de Fê, em mescla de fotografias e desenhos, instigando o leitor a olhar para além do óbvio.

Como livro ilustrado em grande formato, e abrigando em seu interior recortes especiais que criam janelas por onde as belíssimas ilustrações de Benjamin Lacombe podem interagir e formar variadas composições, Frida, escrito por Sébastien Perez, revela a crianças, jovens e também adultos, a trajetória da pintora Frida Kahlo. Em tom de prosa poética, o texto, ainda não publicado no Brasil, dá voz ao mais íntimo da artista. Suas reflexões demonstram buscas e dores, enquanto as imagens reinterpretam as obras, abrindo novos universos e camadas de significação:

Hace poco, casi unos días, era una niña que caminaba por un mundo de colores, de formas duras y tangibles. Todo era misterioso y ocultaba algo (…) Ahora habito en un planeta doloroso, transparente, como de hielo, pero que nada oculta. (…) Pinto al ritmo que marcan mis dolores, un degradado que va del verde al rojo sangre, y soy aquello que vivo.

Biografias como as citadas, no formato de livros que crianças e jovens também podem ler, miram um mundo mais equitativo. Um mundo em que as oportunidades e o direito à existência plena não sejam fruto de condições predeterminadas por estruturas de poder, mas um bem assegurado a qualquer indivíduo. Conhecendo histórias de mulheres reais que atuaram em mudanças no curso da história, é possível reconhecer e valorizar o passado e construir, no presente, futuros desejáveis, nos quais as mulheres decidam escrever a vida que a elas convier.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

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