Literatura de entretenimento: um recorte profano

No campo minado do ensino da literatura, cabe a pergunta: Pode a leitura despretensiosa encaminhar o leitor a outras paragens, a reflexões mais profundas?
Ilustração: Maíra Lacerda
01/10/2021

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

O controle sobre a leitura, e por consequência sobre os livros, será tão antigo quanto a literatura. Selecionar o que pode ser lido e por quem é parte da manutenção do poder que a letra e o impresso propiciam. O nome da rosa, do célebre Umberto Eco, oferece ao público os engenhos de tal controle, em união de uma teoria sofisticada de pensamento e informação com elementos da narrativa policial. Casamento raro e feliz — diversão e qualidade estética —, a obra logrou sucesso comercial e crítico em todo o mundo. Em geral, o que mais agrada ao leitor e ele lê com voracidade entra no rol do entretenimento, afastando-se da literatura. No tocante a leitores jovens, a norma é gerar-se uma incompatibilidade entre aquilo que leem com prazer e o que devem ler para edificação e bom rendimento escolar, atendendo aos objetivos da escola e da família.

Estudos voltados à recepção da leitura e à formação de leitores somam-se à prática para mostrar que o prazer não é impeditivo da fruição. Entreter-se com uma leitura não significa, via de regra, inviabilizar proveito sensível ou intelectual; literatura de entretenimento é um gênero saudável, legítimo. Atesta-o ninguém menos que o historiador do livro e da leitura Roger Chartier, que clama, sobretudo para os jovens, o direito de escolha quanto a suas leituras, sem ficarem restritos às indicações da escola ou à lista para os exames de acesso às universidades. Não se lê bem sem diversidade. Contudo, em vez da liberdade requerida, para grande parte dos jovens ocorrem leituras feitas às escondidas, longe dos olhares de pais e professores, fora do cânone escolar, chamadas por Chartier de leituras selvagens. Constituem-se, normalmente, em livros de aventuras, romances de amor, histórias de personagens ou circunstâncias transgressoras, depoimentos pessoais de situações limite, na implicação do real como matéria de conhecimento para o leitor e a leitora, ávidos ambos por travar contato com a própria existência por meio de livros, como relata Marina Colasanti, na obra Fragatas para terras distantes.

Menos do que conteúdo proibido, envolvendo circunstâncias sexuais ou criminosas, o que é, muitas vezes, retirado de cena, não passa de história banal, com a qual não se deve perder tempo, ou assim afirmam os defensores de uma literatura canônica. Discussões acaloradas entre a obrigatoriedade da leitura dos clássicos e a possibilidade da leitura sem interferências outras, senão a escolha do indivíduo, podem desembocar em perspectivas radicais, na imposição de um cânone e exclusão dos textos vistos como não recomendáveis, ou evitáveis. Mas se não há atividade humana que não seja movida pelo prazer, compreendido em todos os devidos matizes, por que seria diferente com a leitura? Na herança judaico-cristã, porém, o prazer não é bem-visto, apenas tolerado, ao andar de braços com a sublimação. Em função desse mesmo legado, o livro ganha uma sacralidade, seja porque aquele considerado o maior deles, a Bíblia, é o portador da palavra de Deus, seja pela simbiose com o poder, que encontra nessa relação uma das mais eficientes formas de proteção ao monopólio da palavra escrita. A veste da sacralidade atende também ao propósito dos objetivos nobres, cujos resquícios ainda transitam por uma pedagogia da leitura. Fernando Cruz Kronfly, intelectual colombiano, resume que, por largo tempo, as obras de literatura oferecidas às crianças e aos jovens tiveram por objetivo que eles não viessem a ser como os adultos, enfronhados em pecado e vergonha. A concepção da leitura como edificação da alma encontra aí sua gênese, na qual não caberão os desperdícios da escolha própria, do prazer, da evasão, do irrelevante. A visão contemporânea de ler por ler, esposada por Armando Petrucci, e que compreende a leitura como uma entre tantas das atividades a serem exercidas por jovens, enfrenta resistência na mentalidade de valorização da leitura literária.

Sem entrar em discussões teóricas, sugerindo apenas a leitura do verbete “Paraliteratura” no E-dicionário de termos literários, de Carlos Ceia, e julgando pertinente a posição do prêmio Jabuti, que inclui em sua 62ª edição (2020) a categoria romance de entretenimento, visando contemplar obras que são em geral excluídas de certames literários, avaliamos a literatura que entretém como significativa para a experiência leitora de qualquer indivíduo. Tomaríamos em síntese as características aludidas de diversão e passatempo para delinear o gênero. No dicionário Houaiss, entreter, tem como sentido essencial “prender, desviar a atenção de, distrair”. É interessante verificar que entre os exemplos fornecidos para o uso do verbete, dois deles usam o vocábulo livros como sujeito ou objeto das orações. Livros entretêm.

Mas livros também formam. Preparam para a vida, como os romances de formação se esmeram em provar. Podendo condensar toda uma época ou maneira de ser e agir, voltado à jornada da vida, o gênero contribuiu fortemente para a perspectiva do aprimoramento pessoal por meio da leitura. Tal posição, e não só, impõe exemplos, prescrições e limites ao ato de ler, que o leitor ignora, na medida em que — na oportuna imagem de Michel de Certeau — ele caça em campos alheios, sem preocupação nem com o que foi plantado, nem com o que deve amealhar. Caso as coerções sejam constrangedoras, vai em busca de outros campos. Assim o serve para, penduricalho comum nos projetos pedagógicos, não cabe na leitura. Não cabem, igualmente, considerações de valor projetadas sobre escolhas pessoais. No entanto, alcançar a leitura crítica, intensiva, que potencializa a experiência humana, goza de certo consenso entre profissionais da leitura. Então? Pode-se chegar a isso no fluxo de um caminho a começar na diversão, no arroubo de uma aventura? Pode a leitura despretensiosa encaminhar o leitor a outras paragens, a reflexões mais profundas? Pode-se permanecer por toda a vida na modalidade de uma leitura extensiva, sem se alçar a experiências mais substanciais? É real, mas será ruim? É difícil aceitar que não são todas as pessoas que optam pela leitura literária como forma de lidar com o mundo?

É possível o contentamento com o fato de que ler pode vir da gratuidade e aí permanecer? Ler porque não se tem outra coisa para fazer? Ler para esquecer e, em razão disso, continuar a ler? Entreter-se com um livro pode ser a magnífica condição de encontrar o tempo entre suas páginas? Um tempo perdulário, criado pelo humano para uso profano? Em frente ao templo, e sem entrar nele. Ler por entretenimento: um ato de liberdade.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

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