Etiquetas e prateleiras: HQs e literatura para crianças

As histórias em quadrinhos e a dita literatura infantojuvenil ainda sofrem de preconceitos que as reduzem e não reconhecem seu valor artístico
Ilustração: Maíra Lacerda (Colagem a partir de ilustrações de Marcelo D’Salete e Eloar Guazzelli)
01/11/2021

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

Em publicação recente, um leitor deste jornal* elogiou a iniciativa de abrir espaço aos Quadrinhos. “Mas”, continua, “vale ressaltar que colocar a Nona Arte ao lado de literatura infantojuvenil é um desserviço às artes gráficas, já que há mais de décadas as HQs lutam para escaparem ao (errôneo) rótulo de ‘leitura para criança’. A arte dos Quadrinhos merece um espaço maior e próprio”. Antes de considerar a resposta do Rascunho, nos solidarizaríamos com o leitor, pois, também há décadas, a literatura que crianças e jovens também podem ler luta por sair do espaço a ela destinado por um consenso conveniente e equivocado.

As condições tão desiguais do Brasil implicam em que, para grande parte das crianças e dos jovens, o contato com a leitura se dê no espaço escolar, acarretando o desvio dos livros de literatura destinados potencialmente a esse público para a prateleira dos chamados paradidáticos, denominação que os vincula às temáticas escolares. Basta consultar o catálogo das principais editoras de livros infantis ou juvenis que o rótulo está lá. A prática de reduzir a literatura à função de auxiliar pedagógica embute o (pre)conceito de que apenas os adultos são capazes de fruição estética. Mas a literatura infantil e juvenil ou infantojuvenil (avançamos nos equívocos) ou é literatura e ponto final ou é outra coisa e se abre o parágrafo.

Não sendo literatura, é livro informativo — importante e necessário —, cartilha, manual, ou, como acontece com tantos livros destinados a adultos, uma fórmula aplicada. Ana Maria Machado e Marina Colasanti são incansáveis em afirmações sobre a diferença entre livro para crianças e literatura para crianças. Em setembro último, no 23° Seminário Bartolomeu Campos de Queirós, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, Marina vale-se do termo histórias ensinosas, perfeito para a apropriação e descaracterização da literatura, para se dizer pouco, com frequência realizada pela Educação, pelas Boas Maneiras e por ações da sociedade, no permanente controle sobre a leitura, evidentes sobretudo em projetos governamentais na atualidade. Como se fosse literatura, são passados conteúdos em franca contradição com a arte.

Professoras de vários estágios da Educação e estudiosas do campo de que aqui nos ocupamos, nossa posição crítica comunga com as de Cecília Meireles e Peter Hunt, de Nelson Cruz e Graça Lima, e ainda de María Teresa Andruetto, cujo título Por uma literatura sem adjetivos advoga a ausência de qualificações suplementares para as produções literárias em que crianças são as leitoras preferenciais, o que não impede a fruição para leitores de outras idades. Reconhecemos, no entanto, que funcionalidade e tradição atrasam essa mudança.

Fatores semelhantes, somados a preconceitos em relação à imagem quando associada ao conteúdo verbal, terão atrasado o reconhecimento das HQs como arte. O trabalho consistente e persistente de artistas valeu aos Quadrinhos a conquista do merecido lugar posto em relevo pelo leitor do Rascunho. O caráter estético e singular das narrativas expressas em forma híbrida de imagem e palavras, ou texto verbal e texto visual, já não é posto em discussão. A vanguarda das HQs, em sua potência de imagem, síntese dos diálogos e das marcações, em atenção aos conceitos primordiais de rapidez e visibilidade, de que nos fala Calvino, é evidente.

Sem qualquer pretensão senão a de ressaltar o bom companheirismo entre Quadrinhos e Literatura que crianças e jovens também leem, lembraríamos a boa mão na roda que as HQs têm dado à vulgarização dos clássicos. São inúmeros os exemplos de jovens que talvez não lessem Ilíada, Odisseia, A divina comédia, ou mesmo Vidas secas, que leem, porém, essas obras quando recriadas, ou traduzidas, em HQs. No clássico de Graciliano Ramos, as imagens de Guazzelli retratam as cores da terra seca, do calor do sol, do sofrimento sentido na carne de personagens expressos por manchas de tinta sem definição, sem rosto, sem expressão. Tais personagens somente têm as feições distinguidas em momentos de angústia e opressão, em que closes dos olhos expressam tal condição melhor que palavras. Os enquadramentos expressivos e dramáticos do artista recriam a sensação de dor, inclemência e impotência, patentes no discurso verbal anterior. Dessa forma, o artista plástico e ilustrador amplia a narrativa literária, abrindo novas experiências de leitura para antigos leitores — de diferentes faixas etárias — e possibilitando novas aproximações. É ousado, então, dizer que HQs passam também a compor a equação jovem e leitura literária?

Experimentos, como A invenção de Hugo Cabret, obra de grande sucesso de Brian Selznick, contribui para uma desestabilização dos campos expressivos, e, ao convocar o cinema para uma ciranda, na qual diferentes registros estéticos propiciam fruição ao leitor, levanta instigantes perguntas. Quem é o leitor potencial dessa obra? E da graphic novel, normalmente traduzida como novela gráfica, embora romance gráfico seja o mais adequado? O leitor jovem, o adulto, o jovem adulto? Que importa quem lê, se a obra suscita interesse e é boa? Persépolis, de Marjane Satrapi, Retalhos, de Craig Thompson, El despertar de Heisenberg, dos espanhóis Joan Manuel Gisbert e Pablo Auladell, Cumbe e Angola Janga, de Marcelo D’Salete, Desequilibristas e O corvo, títulos de Manu Maltez que, sem ser HQs stricto sensu, habitam igualmente este território de privilégio da imagem, ilustrada pela palavra? Tememos que tais obras, se tomadas como leitura para jovens, sejam, devido à proximidade com as prateleiras didáticas, desqualificadas de alguma forma?

A resposta do editor seguiu pela via da confiança nos leitores e nas leitoras do Rascunho, capazes de realizar — se julgado necessário — a distinção adequada entre manifestações estéticas diversas. Ao fim e ao cabo, o processo em jogo é o mesmo: a leitura, ou seja, a construção de sentidos narrativos, poéticos, não importa se por meio do desenho, da palavra escrita ou por ambos. Se, na esteira dos estudos bakhtinianos, considerarmos, como diz Beth Brait, que, em obra com conteúdo verbal e conteúdo visual, a leitura se dá em dimensão verbo-visual, isto é, são ambos lidos de forma concomitante e interdependente, por que a preocupação com a distinção? Em pequeno texto elucidativo, Silviano Santiago refere-se às “etiquetas” coladas ao produto literário em busca de seu espaço. Assim, a literatura “negra”, “feminina”, “homossexual”, “infantil” e “juvenil”. Para ele, é apenas questão de fazer-se enxergar, de reparar ausências sociais, e sendo bom o produto em sua essência, o tempo se encarregará de eliminar o que sobra — a etiqueta. No mundo que está aí para se passar a limpo, o Rascunho fornecerá páginas necessárias, e movimentos de ciranda serão bem-vindos, em contraposição à habitual rigidez das prateleiras. Assim acreditamos.

* Edição 256 do Rascunho, seção “Eu, o leitor”, carta de Thiago Viana, Itapevi, SP, sob o título “HQS para todos”.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

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